É mais um volume de uma série de biografias de personalidades ligadas à cultura portuguesa, lançada em Janeiro de 2019 pela Contraponto, colecção que apresentou já aos leitores figuras como Manuel António Pina, Manoel de Oliveira ou Agustina Bessa-Luís. Desta vez, coube a Bruno Vieira Amaral, construtor literário do Bairro Amélia, escrever “Integrado Marginal” (Contraponto, 2021), a biografia de um tipo que ficou para a história como noctívago, boémio e brigão – e que, no BI, assinava como José Cardoso Pires.
Correndo os riscos de escrever sobre uma figura polémica, ainda não suficientemente afastada do actual calendário e envolta em batalhas políticas e literárias que deixaram marca, Bruno Vieira Amaral fez um trabalho sensacional, construindo uma biografia – a sua – que é, para além de um marco histórico, um triunfo ficcional.
“A 13 de setembro de 1884, pelas onze horas da noite, nasceu na freguesia de São João do Peso, concelho de Vila de Rei, um indivíduo do sexo masculino a quem foi dado o nome de José António. Era o primogénito do casal. A mãe, tecedeira, de nome Maria Joana, era natural daquela aldeia. Ao pai, também ele José António, operário oriundo de Proença-a-Nova, conheciam-no na aldeia como «Zé dos Bois». Dizia-se que nascera numa manjedoura e tinha sido posto na roda, onde eram entregues as crianças enjeitadas. A São João do Peso chegou já adolescente para trabalhar na Casa João da Cova, a cuidar dos bois, razão da sua alcunha.”
Começa desta forma, recuando à origem parental, uma viagem que segue uma linha cronológica, e que nos começa por apresentar aquele que foi, na sua meninice, um menino da mamã – uma devota até mais não -, obrigado e usar joelheiras, cotoveleiras – uma espécie de babete – e escoltado, para vergonha sua, pela criada até à escola.
O trabalho de Bruno Vieira Amaral é de esmerado artífice, juntando, ao trabalho de biógrafo, um refrescante olhar histórico e um apurado sexto sentido para a crítica literária. Ao longo de quase seiscentas páginas, acompanhamos a implementação do Estado Novo e a forma como este foi implementado junto das crianças e das escolas (e de toda a sociedade); conhecemos a aversão de Cardoso Pires ao mundo da religião, ele que “era um menino do liceu que arranjou maneira de conviver com a choldra da Almirante Reis”; a relação com Luiz Pacheco, que foi do amor ao azedume; a formação literária à boleia de autores anglo-saxónicos; o nascimento da formação de um estilo com o livro “Semana Inglesa” que, “mais do a inspiração em obra alheia ou a inserção numa determinada corrente estética, (…) demonstrava a capacidade de Cardoso Pires transformar a matéria-prima recolhida na experiência pessoal em matéria literária autónoma, evitando quer as armadilhas do sentimentalismo neorrealista, quer o mero apontamento etnográfico ou sociológico”; a entrada para o PCP pelas mãos de Cesariny; o sonho perdido da geração de 45; o mestre Mário Dionísio, que lhe mostrou o caminho da sua escrita – e a quem Cardoso Pires fez uma sacanice; a confidente Maria Lamas; a censura de “Histórias de Amor” pela PIDE, o único livro que viu censurado; “as questões políticas e as politiquices do meio intelectual”; a parceria com a mulher Edite, revisora – e redactora – maior da sua obra; a propensão para o pugilismo e a cabeçada; a reescrita obsessiva dos livros; a relação nunca fácil com José Saramago, qualquer coisa como um Blur vs Oasis; o mundo turbulento dos prémios literários; o fim da ditadura; o baptismo do banco de réus em plena democracia; o trabalho na Câmara Municipal de Lisboa; ou, também, um atento olhar sobre cada um dos livros, relacionando-o com o homem e a época, convidando o leitor à (re)descoberta da obra de um dos maiores escritores da literatura portuguesa, que só não deixou para trás mais monumentos devido à busca da perfeição e a uma permanente insatisfação.
“…nunca cultivei qualquer espírito de grupo. Quando muito, talvez nunca tenha passado em toda a minha vida de um integrado marginal ou coisa que se pareça… Para aí, sim: integrado e marginal (…)”. As palavras são de Cardoso Pires, palavras que Bruno Vieira Amaral usa para dar título a esta biografia que se lê como um grande romance e que, recusando também ela o sentimentalismo neorrealista, termina ao estilo de um apontamento necrológico de uma amarelecida página de jornal: “No dia 26 de outubro, às duas horas e trinta minutos da madrugada, José Augusto Neves Cardoso Pires morreu no Hospital de Santa Maria. O país conhecia-o com autor de O Delfim, Balada da Praia dos Cães, De Profundis – Valsa Lenta. Resistira durante três meses e meio até não aguentar mais. Tinha 73 anos. O corpo foi cremado no dia seguinte e as cinzas depositadas no mausoléu dos escritores no Cemitério dos Prazeres”.
3 Commentários
Adoro o trocadilho do deusmelivro e acho muito útil a sua existência. Na recensão ao Integrado Marginal, duas ressalvas: joelheiras e cotoveleiras são remendos (nos joelhos das calças e nos cotovelos dos casacos), à época sinais de grande pobreza. Não sendo o caso da família de JCP e sendo liceu Camões o liceu dos “betinhos” da época, usar remendos (lindos, de camurça… hoje fariam furor) estigmatizava o portador.
Segundo alerta: a mulher de JCP batia-lhe os manuscritos à máquina (fora do seu horário de trabalho, como enfermeira). Podia alertar para algum lapso, mas nem revia nem redigia nada.
Resta-me saudar a escolha deste livro para recensão no deusmelivro!
De facto, toda a frase das “joelheiras e cotoveleiras” é escabrosa, quer na sintaxe, quer na pontuação, e só a partir do seu comentário percebi que se referia aos remendos na roupa. Fiquei a imaginar o pobre rapaz com joelheiras e cotoveleiras para se arrastar no chão no pagamento de promessas, uma vez que esta informação vem na sequência de uma alusão à devoção religiosa da mãe.
Talvez o JL seja um território mais seguro para o leitor. Cumprimentos literários.