Quando, em 1956, o autor James Baldwin entregou o manuscrito de “O Quarto de Giovanni” (Alfaguara, 2020) ao seu editor, este, depois de o ler, aconselhou-o vivamente a queimá-lo. Contudo, Baldwin quis levar avante a publicação do livro, que viria a ser a sua obra mais célebre. O autor negro e homossexual escreveu uma história de amor entre dois homens. Todavia, desengane-se quem procurar semelhanças físicas entre David, o protagonista da história, e o autor. A ideia de Baldwin ter escrito sob um reflexo narcisístico é abolida logo nas primeiras páginas, através da descrição do protagonista: “O meu reflexo é alto, talvez um pouco como uma seta, o meu cabelo loiro brilha. (…) Os meus antepassados conquistaram um continente, atravessando planícies repletas de morte para chegarem até a um oceano virado de costas para a Europa e de frente para um passado mais sombrio”. Baldwin não criou apenas uma história de amor entre dois homens, o que já seria uma afronta à época, mas uma história de amor entre dois homens brancos — um americano e um italiano, em Paris — escrita por um homem negro. Percebe-se a preocupação do editor, quando quis proteger Baldwin evitando a publicação da história. Afinal de contas, estávamos na América dos anos 1950; o autor de Nova Iorque, cidade onde nasceu em 1924, terá, de facto, também ido para Paris para fugir ao racismo e à homofobia.
“O Quarto de Giovanni” trata a história de David, um homem jovem, vindo de Nova Iorque para Paris, onde vive temporariamente sozinho, uma vez que a noiva se encontra a passar uma temporada em Espanha. David, uma vez só, vai tentando pôr as ideias em ordem e, sobretudo, perceber o que certos acontecimentos do passado revelam sobre si próprio. Numa noite em que vai até um dos bares parisienses para se divertir um pouco, conhece Giovanni, um barman italiano, atraente e sedutor. David fica irreparavelmente seduzido por aquele homem. Começa então a história de sexo e de amor, de paixão, entre David e Giovanni, vivida em exclusivo entre as quatro paredes do quarto do barman italiano. Uma relação vivida por David com culpa e remorsos e com o fantasma da noiva, Hella, e do seu regresso de Espanha a pairar sobre a cabeça do jovem americano.
Para além da história homossexual, “O Quarto de Giovanni”, considerado um clássico do romance moderno americano, trata de questões familiares: o ódio ao pai e a rejeição ao meio familiar. “Daquele dia em diante e com a intensidade misteriosa, arguta e terrível de muitos jovens, desprezei o meu pai”. Mas “O Quarto de Giovanni” é, sobretudo, uma narrativa que faz reflectir sobre a forma como decidimos, ou não, viver as nossas vidas. A questão de vivermos sob o mote da falsidade, condicionados pelo medo gerado por preconceitos sociais que nos foram inculcados. O livro de Baldwin, publicado em Portugal pela Alfaguara, é o segundo romance do autor, e trata-se de um sismo potente sobre a necessidade de fazer escolhas e assumi-las. Por vezes, aceitar o quarto que conseguimos arranjar, mas também escolher outro quarto, mudar de quarto e tirar da clandestinidade esse quarto, tornando-o uma casa. Mesmo que essa casa termine em tragédia. “O mundo está cheio de quartos. Quartos grandes, quartos pequenos, quartos redondos, quartos quadrados, quartos com pé-direito alto, quartos com pé-direito baixo, todo o tipo de quartos! (…) Quanto tempo achas que me levou a encontrar o quarto onde estou?”.
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