É um dos grande romances da escritora Margaret Atwood aquele que, há cerca dois meses, chegou às livrarias portuguesas numa adaptação a novela gráfica, muito bem servida pelas extraordinárias ilustrações e delírio visual de Renée Atwood.
“A História de Uma Serva” (Bertrand Editora, 2020) transporta-nos até à República de Gileade, um lugar onde o trabalho, a leitura, a formação de amizades e tudo o que seja prazeroso está vedado às mulheres.
Defred é uma serva na República de Gileade, fundada pelos extremistas cristãos de direita, que derrubaram o governo norte-americano e atiraram com a Constituição à fogueira. Trata-se uma cidade sitiada, cercada por um muro de tijolo vermelho, «com arame farpado junto ao chão e pedaços de vidro em cima.» É junto a este muro que, em ganchos suspensos, são exibidos os corpos dos dissidentes capturados, para servir de aviso e acalmar qualquer indício ou vontade de rebelião.
Aqui, as mulheres perderam todos os direitos e voltaram à Idade da Pedra: estão proibidas de ler – ou de aprender a ler -, os seus movimentos são vigiados, têm de se remeter ao silêncio na quase totalidade do tempo, estão proibidas de tocar e, basicamente, limitam-se a servir de máquinas procriadoras, sendo esse o seu pequeno mas periclitante trunfo, já que o fracasso reprodutivo implica uma viagem e exílio para as Colónias, um mundo extremamente poluído e com poucas hipóteses de sobrevivência.
Como não podia deixar de ser num regime extremo, deparamo-nos com um tímido movimento de resistência – o Mayday, em homenagem ao 1º de Maio -, ainda que pareça não ter forças para derrubar um regime alicerçado na punição e controlo extremos.
A pirâmide social feminina está assente em quatro plataformas: as não-mulheres, que vivem nas colónias; as martas, que passam as novidades oficiosas de casa em casa, escutam por detrás das portas e conseguem ver quase de olhos fechados; as esposas dos comandantes, normalmente inférteis, com privilégios incomuns mas extremamente infelizes; e as servas, como Defred, que vivem como que num presídio militar – ou num quarto monástico -, vestidas de vermelho da cabeça aos pés, excepção feita ao chapéu branco com abas. A missão das servas é a de procriar, sendo os filhos entregues a outras mulheres.
Como teremos chegado a este cenário, em que as compras são feitas com senhas de racionamento, o pensamento é racionado, a fé não passa de uma palavra, o mercado negro representa o paraíso e onde não há qualquer espaço para o amor? Como diz orgulhosamente uma das martas – através de uma memória de Defred -, glorificando o estado das coisas, «éramos uma sociedade moribunda, de demasiada escolha.»
Escrito como um diário de sobrevivência, “A História de uma Serva” é um retrato político e negro da sociedade moderna, que mostra de forma soberba a injustiça que a História pratica ao tentar, em vez de julgar, apenas compreender. «Como é fácil inventar uma humanidade, seja a quem for», afirma Defred a certa altura do romance. Sábias palavras.
As ilustrações de Renée Atwood, misturando técnicas e estilos de desenho, dão agora vida ao que o leitor havia desenhado com a sua própria imaginação, emprestando corpo e cor a um mundo aterrador e, de certa forma, profético, como parece ser apanágio de distopias visionárias na senda de “1984”, “Nós” ou “Admirável Mundo Novo”. Uma novela gráfica que é já, em Abril, uma das grandes edições de 2020 no que diz respeito à banda desenhada. Cinco estrelas.
Margaret Atwood é autora de mais de cinquenta livros de ficção, poesia e ensaios críticos. Além de “A História de Uma Serva”, os seus romances incluem “Chamavam-lhe Grace”, que ganhou o Giller Prize no Canadá e o Premio Mondello em Itália; “O Assassino Cego”, vencedor do Booker Prize; “Órix e Crex”, finalista do Giller Prize e do Man Booker Prize; “O Ano do Dilúvio, MaddAddam”; “O Coração é o Último a Morrer”; e, mais recentemente, “Semente de Bruxa”. Atwood é também co-criadora (com Johnnie Christmas) da série de novelas gráficas “Angel Catbird”. Vive em Toronto.
Renée Nault é uma artista canadiana, conhecida pelas suas vívidas e oníricas ilustrações em aguarela e tinta. O seu trabalho é publicado em livros, revistas e novelas gráficas em todo o mundo. Vive actualemnte em Victoria, Colúmbia Britânica.
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