Com a condução de Ana Sousa Dias, dois dos maiores cronistas portugueses quiseram ser apresentados como se o tempo tivesse voltado atrás quatro décadas: de um lado José Pacheco Pereira, um convicto maoísta; do outro Ferreira Fernandes, um exacerbado trotskista. A mesa, posta no âmbito do FOLIO – Festival Literário Internacional de Óbidos, propunha uma conversa sobre a arte da crónica e o seu papel num mundo que lê cada vez menos jornais.
Dois lados da barricada que, cronisticamente falando, estão nos antípodas do acto da escrita. Enquanto Pacheco Pereira é o rei da racionalidade e factualidade, de crónicas extensas e claras sobre os acontecimentos que vão marcando a actualidade, Ferreira Fernandes é o mestre da crónica económica, focando-se no pormenor e nas entrelinhas do factual. Em qualquer um dos casos, ambos disparam para o mesmo lado, tendo na curiosidade pelo outro – seja do ponto de vista humano ou da preservação escrita da memória – e pelo que nos cerca algo que alimenta a necessidade diária de um assunto para ser visto à lupa.
Não faltaram histórias brilhantes, que fizeram com que uma hora e meia de conversa tivesse passado num sopro: Pacheco Pereira levou-nos aos tempos socialistas e fabris do Porto, que deram nascimento a clubes de futebol como o Salgueiros ou o Boavista. Falou do Salazarismo como um regime negro que interrompeu o processo da memória histórica ou tiros no pé (uma boa forma de disparar sobre alguém sem ter a chatice de matá-la” e disse, entre muitas outras coisas, que “não há nada melhor para conhecer uma pessoa do que a sua biblioteca”; Ferreira Fonseca elogiou a escola de crónica brasileira, aquela que o fez um dia querer ser jornalista. Contou histórias de bagaço passadas no Hawai, e ficámos a saber da sua admiração por duas figuras femininas: Kate Winslet e… Ana Malhoa. Retivemos aquela que será porventura a ideia chave para quem quer fazer da crónica um modo de vida: esta pode permitir-se tudo, menos ser chata.
“A natureza da história é sempre uma surpresa”, disse Pacheco Pereira referindo-se ao ruído do mundo. Quem assistiu a este debate não levou para casa qualquer ruído. Apenas a genialidade e a boa disposição de dois homens que sempre souberam viver com as suas memórias, nunca escondendo um passado que outros decidiram eliminar das suas vidas com um simples e inútil apagador da escola.
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