Show de bola. Uma expressão bem brasileira que descreve, na perfeição, a passagem de Gregorio Duvivier pelo FOLIO – Festival Internacional Literário de Óbidos onde, para além de ter apresentado “Caviar é uma ova” (Tinta da China, 2015), livro que reúne as suas incisivas crónicas para a Folha de São Paulo, deu um curioso espectáculo de stand up poetry, mostrando que o humor e a poesia podem, em simultâneo, provocar no espectador o riso. O Deus Me Livro esteve à conversa com o poeta, actor, autor e humorista (e talvez cantor) brasileiro.
Que diferença há entre a esquerda-caviar e a esquerda vulgar (ou, em linguagem piscicóloga, esquerda-atum)?
No Brasil há um trilhão de esquerdas. Enquanto a direita é apenas uma só, que em geral quer sempre a mesma coisa – a permanência ou a perpetuação das diferenças entre as pessoas -, a esquerda quer a mudança. Isso faz com que seja mais plural, uma vez que a mudança é algo bem mais abstracto do que a estagnação. Há, por exemplo, uma esquerda super-feminista, mas as feministas falam também numa esquerda-macho, porque acham que homem falando sobre feminismo tira o protagonismo às mulheres na causa feminista, ajudando a perpetuar a diferença e a roubar os holofotes que devem ser só das mulheres. O rótulo de esquerda-caviar vem da ideia que as pessoas têm de que a esquerda pede um voto franciscano: se você é de esquerda, então tem de ser desapegado de todos os bens materiais. As pessoas confundem as coisas, não há nada em Marx que diga que temos de abdicar de tudo o que temos, ir morar para o mato ou andar descalço. Quem disse isso não foi Marx, foi Jesus. E eu não vejo cristão andar descalço e abdicando de todos os bens materiais. Você não fala de cristão-caviar, mas se calhar deveria. Se tem um ensinamento radical em termos de distribuição de renda é o de Jesus, até mais do que o defendido pelos anarquistas.
Quem ler as tuas crónicas dirá facilmente que és um activista de esquerda ou, pelo menos, um humorista/autor que tem nos direitos cívicos uma motivação. Algo que, no Porta, passa um pouco ao lado.
O Porta é uma empresa com muitas vozes, por isso a gente tenta falar sobre algo com que todos concordem. Somos 5 sócios que escrevem e, por exemplo, nem todos são contra o impeachment, alguns acham que a Dilma tem de cair. Daí tentarmos fazer algo mais uniforme. De um modo geral existem discordâncias que fazem com que o Porta não tenha um pensamento político, e isso é muito bom. É como se nos policiássemos para não nos tornarmos num canal de esquerda ou de direita.
A Clarice é o teu farol?
Sim, a Clarice é uma bússola, um farol. Uma pessoa que me diz muito. Temos uma identificação muito grande, conhecia-a quando tinha 15 anos. Somos uma fraternidade no melhor sentido. Duas pessoas que se identificam muito naquilo que fazem, não só na arte como também na vida.
São Paulo vs Brasil. Uma rivalidade como a que aqui temos entre Porto e Lisboa?
Acho que ainda é mais forte, porque todo o mundo se encaixa em alguma das polaridades. No Brasil é impensável perguntar a alguém se é do Rio ou de São Paulo, você sabe logo isso. É o mesmo que perguntar: você é branco ou negro? Ninguém tem dúvidas no Brasil que eu sou do Rio. Não só pelo sotaque, mas porque o Porta é muito carioca. É estranho mas é uma coisa fundamental. E tem outra coisa histórica – que acho que Lisboa e Porto não têm. O Rio era a capital, a maior cidade. São Paulo cresceu e roubou o protagonismo do Rio em termos financeiros, até políticos. São Paulo é um celeiro, o maior colégio eleitoral do país. O Rio vive uma certa decadência do poder perdido, é lugar de uma aristocracia falida, de uma nobreza perdida, e sente alguma raiva em relação a São Paulo por ser mais rica, maior e poderosa. Já São Paulo tem do Rio a impressão de que são todos vagabundos, que não trabalham, que é um balneário. Os cariocas acham os paulistas ignorantes, cafonas, pouco culturais e nada engraçados. Nelson Rodrigues tem uma frase clássica que diz que “a pior forma de solidão é a companhia de um paulista”. E o paulista não confia no carioca, acha-o pouco sério. Há de facto uma barreira gigantesca entre as duas cidades. Por isso escrever bem sobre São Paulo é meio um acto estranho para um carioca. Há também esta diferença: os cariocas adoram falar bem do Rio e mal de São Paulo. Os paulistas adoram falar bem do Rio e falar mal de São Paulo. De alguma forma todo o mundo concorda. A graça de falar bem de São Paulo é que ninguém fala bem de São Paulo. Até se vê isso nas músicas de amor a São Paulo: em “Não existe amor em SP”, ou quando Caetano canta “Da dura poesia concreta de tuas esquinas; Da deselegância discreta de tuas meninas”, em “SAMPA”. É um elogio muito torto. Apesar de tudo gosto da cidade e das pessoas que moram lá.
Algumas das tuas crónicas parecem resultar da falta de assunto.
Acho que é um truque baixo e antigo escrever sobre a falta de assunto. Mas ao mesmo tempo, e muito de vez em quando, a coisa surte efeito. A peça que eu faço – “Uma Noite na Lua” – é basicamente sobre a falta de assunto, sobre um autor tentando escrever uma peça. É essa a história. Gosto muito de meta-linguagem, que promove um jogo de espelhos. Gosto desse tipo de narrativa vertiginosa, na literatura o Paul Auster faz muito isso. Mas a falta de assunto é algo inerente a quem escreve. Todo o autor já escreveu esta crónica.
Há muitas diferenças entre a crónica brasileira e a portuguesa?
Tenho a impressão de que aqui em Portugal se escreve melhor, tem uma literatura que considero melhor que a brasileira, sobretudo ao nível do romance. Na poesia tem talvez a melhor literatura do mundo, considero o Pessoa o melhor poeta que já li em todas as línguas. No Brasil temos uma tradição da crónica falada, que quase parece conversa de botequim. Tem uma linguagem que começou com Ruben Braga e Paulo Mendes Campos (outro cara muito legal), que talvez não tenham chegado aqui. Actualmente temos, por exemplo, o António Prata – que também escreve para a Folha e será publicado em Portugal pela Tinta da China. Acho que essa é uma tradição de género literário que parece uma conversa de café, em que estás sentado em frente do cara e ele está-te contando uma história, ou argumentando. Isso é muito interessante enquanto género, e muito diferente da crónica que se escreve aqui. Há sobretudo uma busca pela informalidade na crónica brasileira, uma espécie de lugar franciscano da tradição oral. Não vejo isso nas crónicas aqui, tanto do Ricardo como do Lobo Antunes ou do Mexia. A tradição aqui é mais literária, rebuscada, menos oral. Um pouco como o humor português.
Poeta, humorista, actor, cronista. Em qual destas peles te sentes mais confortável?
Onde me sinto mais confortável é actuando, e talvez por isso tenha representado tão pouco. O que mais me incentiva a fazer coisas é o risco, é o não saber. Adoro a dificuldade, talvez por isso tenha decidido aprender a tocar trombone. O risco é o lugar que mais me interessa.
Esse risco notou-se no arranque no teu stand up poetry…
Estava nervoso, tímido, sem saber por onde começar. Acho que é por isso, por esse sentimento de timidez, que sou actor. Muito mais que pelo conforto. Acabo por buscar sempre esse desconforto, seja no stand up poetry ou em outras coisas que nunca fiz, porque é assim que você chega a lugares interessantes.
As redes sociais têm um papel cada vez mais interventivo – nem sempre no bom sentido – na sociedade. Revês-te nesta geração social?
A rede social dá-te uma recompensa imediata de afecto, e as pessoas são muito carentes. Cada curtida é uma descarga de afecto em algum lugar, e isso gerou uma geração escrava da curtida, do like, dessa interacção, e eu me incluo nela. O ideal é usar as redes sociais sem deixar que elas te usem. Para mim são muito importantes para divulgar as coisas, mas quando entro para divulgar uma coisa de repente passaram duas horas. Além disso, a internet comigo compete com a literatura, e trata-se de uma competição desleal porque ali tem um trilhão de informações com imagens fáceis de digerir. Quatro horas ali parecem dez minutos. Os lugares onde mais leio hoje em dia são os que não têm internet, como no avião ou em alguns lugares do interior. É bom haver ainda lugares sem rede.
Sentes-te mesmo em terra estranha no Brasil, como dizes a certa altura numa das crónicas?
O Brasil é um enigma, um país muito difícil de entender. É um país ultra-sexual: o tamanho dos biquínis, a sexualidade das pessoas que você sente logo no toque – deve ser o país onde as pessoas mais se agarram sem se conhecer, mais se agarram, se pegam, tem um erotismo gigantesco. E, ao mesmo tempo, é um dos países mais conservadores e religiosos que tem. As pessoas ou são católicas, ou evangélicas, ou são umbanda ou são espíritas (ou são os quatro). É um país muito religioso que tem a pior das religiões: o conservadorismo, o obscurantismo, o medo do outro. E também a prisão sexual. Há muitos jovens que preferem esperar pelo casamento para ter sexo. Como é que pode um país tão libertino ser ao mesmo tempo tão conservador, onde o aborto nem é discutido? É um país onde não se pode fazer topless na praia. Mais do que erótico é um país conservador, que comporta o erotismo mas onde há muita repressão e pouca liberdade sexual. É um país que não admite muito a discordância, você não tem muitos pensamentos discordantes, é uma espécie de cultura do consenso. Você tem partidos que não têm ideologia, conflitos ou debates ideológicos. A guerra é pelo poder, sempre. O que me incomoda na questão política hoje em dia é que não é um debate ideológico, por ideias, é um debate pessoal. As pessoas acusam-se umas às outras não de pensar diferente mas por uma questão de carácter. Daí a minha desilusão com o Brasil e de achar que será muito difícil sair desse nó górdio. O que fazer com isso? Agora, por exemplo, temos um governo corrupto, cheio de gente corrupta, e uma oposição que é muito pior, mais corrupta, e que não consegue tirar o governo porque de cada vez que apontam algo ao governo há alguém na oposição que fez igual ou pior. Ou cai todo o mundo ou não cai ninguém, e continuamos assim. As pessoas não acreditam muito na mudança.
Tendo em vista uma tour alargada em Portugal, como venderias o teu espectáculo de stand up poetry?
Acho que o humor e a poesia vão muito bem juntos. O humor volta e meia padece de falta de humanidade, de empatia, de sentimento. E a poesia às vezes padece de falta de leveza, de comunicação, e o que define o humor é a comunicação com o outro, a vontade de fazer o outro rir, e a poesia muitas vezes faz isso para si mesma. Para mim é lindo quando o humor encontra a poesia, quando você tem humor com afecto e poesia com leveza. É isso que eu busco na vida, um lugar muito feliz de se estar, de se tentar estar. Tomara que chegue lá e vos encontre no palco, nesse lugar entre o humor e a poesia, que considero o lugar mais feliz onde se pode estar.
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