Há livros maiores do que o tempo, que atravessam gerações e sobrevivem ao nome dos autores. Talvez poucos saibam, hoje, os nomes dos autores de “Moby Dick”, “Frankenstein”, “A Divina Comédia”, “Admirável Mundo Novo” ou a “Laranja Mecânica”, porque estas obras transcenderam tendências, estilos literários. Tornaram-se parte do imaginário colectivo.
“Vozes de Chernobyl” (Elsinore, 2016) – com o sub-título História de um desastre nuclear -pertence a este clube restrito de obras que sobreviverá a mil anos de história ou a cem anos de solidão, como a radiação expelida de quinhentas vozes em uníssono, quinhentas vozes distintas, quinhentas vozes que contêm a alma dos habitantes da região de Chernobyl.
Mais importante do que tentar classificar a escrita de Svetlana Alexievich (será o aperfeiçoamento do “romance colectivo”, do “romance-evidência” ou do “coro épico” que o escritor bielorusso Ales Adamovich iniciou?), mais importante do que constatarmos que a atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 2015 a Svetlana Alexievich marca uma inflexão na tendência da Academia Sueca em premiar romances, novelas ou poesia, é entender a dimensão “épica” do trabalho de reportagem que existe por detrás de “Vozes de Chernobyl” e o legado em que a obra se transforma.
Horas incontáveis de vozes sem rosto que saem do gravador. Horas de angústia, (imaginamos) reconstruindo as expressões dos rostos, os tons da tristeza. Horas febris de quem ouviu, assimilou e reviveu o sofrimento sonâmbulo do povo Ucraniano. É esta a magia que a autora faz, a magia de ouvir silêncios escondidos nas vozes de “Chernobyl” e de revelar muito mais do que poderíamos imaginar quando iniciamos a leitura.
Podemos afirmar que este romance colectivo, coro épico, reportagem polifónica (chamem-lhe o que quiserem) ilustra o início da queda de um gigante com pés de barro? Traduz a dor de alma de um povo alimentado por várias etnias que assiste à agonia da União Soviética? Relata como os habitantes da Região de Polissia, Chernobyl, continuaram a existir, a ser, como se superaram depois de sofrerem na terra e na carne o mais terrível acidente nuclear da história? Dá voz aos corpos de bombeiros e militares anónimos que na madrugada de 26 de Abril de 1986 combateram chamas traiçoeiras, chamas que ficaram na pele e entraram no sangue mesmo depois de apagadas, heróis condenados à morte por falta de equipamentos e meios, heróis que salvaram a Europa sem saberem? Descreve como às 1:23 da madrugada, hora local, um pico de energia inesperado aumentou a potência do quarto reator da central nuclear de Chernobyl até cerca de 100 vezes a potência nominal e de como a explosão resultante, causada pela pressão de vapor e por uma reação química com o combustível exposto, explodiu a tampa de vedação de 1.000 toneladas de betão do núcleo do reator; a segunda explosão permitiu a entrada de ar, fazendo com que o moderador grafite explodisse em chamas? Denuncia a ironia do destino que deportou as gentes de Chernobyl, Pirypiat e outras cidades da região de Polissia que não queriam partir, que se obstinavam em não partir, substituindo-as por famílias anónimas, fugidas das atrocidades das guerras entre etnias que fomentavam a “desunião Soviética”, famílias que preferiram abrigar-se onde só bichos e estruturas de metal e betão continuaram vivos? Expõe o horror das mutações que flagelaram, indiscriminadamente, culpados e inocentes e marcaram na carne humana, a assinatura inesquecível da radiação?
“Vozes de Chernobyl” trata todos esses temas e muito mais. A obra apresentada pela Editora Elsinore e traduzida por Galina Mitrakhovich, abala a veracidade da teoria da forma, conhecida por “Gestaltismo”: não se pode ter conhecimento do “todo” por meio de suas partes, pois o todo é outro, que não a soma de suas partes.
É a voz omissa da autora, uma espécie de narrador-fantasma que investiu milhares de horas na escolha criteriosa de cada palavra, de cada testemunho, que faz luz sobre o todo, através das partes. É essa voz ausente e omnipresente que revela uma verdade universal da condição humana: o paradoxo do medo da mudança e uma incrível capacidade de adaptação e superação. Auscultar as “Vozes de Chernobyl” é mergulhar nessa verdade universal da humanidade, uma verdade transversal a raças e credos.
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