“Vladimir” (Quetzal, 2023), de Julia May Jonas, é uma estreia extraordinária. Há até quem duvide que este seja mesmo o primeiro livro da autora, desconfiando que terá uma gaveta cheia de outros bons romances. “Vladimir”, porém, não é apenas bom: é viciante, hipnótico assim que abraçamos a liminaridade proposta desde as primeiras páginas. E, nessa não-realidade – ou quase-realidade -, ficamos embalados e siderados.
“Mas será que queremos sempre sentir-nos rodeados de tanta cultura? Há qualquer coisa de muito cansativo no facto de sermos constantemente bombardeados pelos melhores esforços de toda a gente.” Antecipando que, mesmo quem se esforça muito, acaba por falhar aqui e ali, e que desse falhanço apenas surge levantada uma ponta muito ténue, não há dúvidas: vamos querer saber mais, saber tudo; vamos querer estar rodeados da cultura e dos esforços aqui narrados.
O meio académico e literário é o pano de fundo no qual um casal se insere. Um casal de intelectuais, que escreve e dá aulas e à volta de quem orbitam outras mentes de currículos invejáveis. Desde cedo, desconfiamos que privam mais para conhecer a desorientação e os falhanços uns dos outros do que para se inspirarem ou aprenderem – e, facilmente, percebemos que a vidinha do dia a dia será a maior musa de todas.
“O fim dos meus cozinhados fora um alívio para ambos – eu guardava ressentimentos desse alarme incessante no fundo do pensamento «o que vamos jantar hoje?», que começava a soar ao meio-dia, todos os dias, e John guardava ressentimentos dos meus ressentimentos.”
Catártico na forma como expõe, mesmo que sem esmiuçar ou julgar, as dinâmicas de diversas relações de pares, “Vladimir” demonstra como a vida profissional é inseparável da amorosa; a vida individual, que projectamos, da vida conjunta que simplesmente vai acontecendo. E, nesse acontecer, pequenas armadilhas se engatilham, como pequenas bombas prontas a rebentar estrategicamente em diferentes futuros. Cenários de insónia, mas não menos reais.
Inteligente e feroz, com uma crítica contundente mas extremamente oportuna, este romance consegue expor inúmeros temas da actualidade, sem com eles galgar o enredo ou fazer-lhe sombra, uma vez que o processo judicial que parece destronar este casal é apenas um espectro de entre vários fantasmas que podem pairar numa relação – numa pessoa. E, se não fica tudo dito, fica certamente perguntado o mais importante: o que nos lança em guerra contra nós mesmos, e que nos deixa imersos na dor?
“Lembrei-me do Inferno de Dante, quando Virgílio censura Dante por ficar a olhar duas almas que estão a discutir uma com a outra, dizendo-lhe que é errado devorar com os olhos dois seres imersos na sua própria dor”. E é precisamente isso que o leitor irá fazer: devorar este livro com os olhos.
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