“Vida Mortal e Imortal da Rapariga de Milão” (Guerra & Paz, 2023), de Domenico Starnone, é a história de um menino napolitano que queria imigrar para a varanda do prédio da frente, para viver de perto a ideia assolapada de conquistar a vizinha, a menina milaneza.
Entre duelos de incoerência e inocência, debate-se e digladia-se por ela com outro menino, revelando uma doçura tonta e disparatada como só as brincadeiras e os amores da infância podem ter. Ao mesmo tempo, tece considerações muito sábias, fruto das leituras e dos convívios com a avó, mesmo que pejadas de calão e dialecto napolitano.
“Tinha na cabeça tantas palavras, tantas fantasias (…) não que houvesse qualquer coerência, as crianças, segundo me parece, não a têm, é uma doença que se contrai com o crescimento.“
Na primeira metade desta história, o que mais conquista o leitor é a avó, uma mulher que “há décadas que não esperava da vida nem sequer um rebuçado”, mas que passou a retirar todo o tipo de doçura da relação que tem com este neto. É dela que queremos saber mais, embora esteja tão escondida como a tal caixa cheia de coisas do passado, arrumada na escuridão poeirenta, num canto debaixo da cama. A caixa, tal como o dialecto, aguardam pela investigação pueril mas sonhadora do neto artista, destinado aos altos patamares da vida académica, que escreve poemas à Humanidade e os encarcera no marco do correio, contando que sejam bem distribuídos.
“Geralmente não punha destinatário, versos e prosa eram implicitamente destinados ao género humano. Naquela ocasião, porém, escrevi antes de tudo, na parte de cima da folha: para a milanesa; depois desenhei um selo colorido com lápis de cera…“
Não será de estranhar, não obstante a perspicácia e o “ânimo combativo” do remetente, que este amor não passe do papel, rapidamente mostrando ser mais uma das coisas capazes de se desmoronar, “deixando assim um rasgão na tecedura verbal das coisas, que acabará por causar progressivamente a sua dissolução”.
Esta sensação de constante finitude evolui e cresce com ele, numa experiência primordial e visceral perante a perda de pessoas, das ilusões, fantasias e até mesmo da memória, testemunha da vida e companheira cheia de habilidade narrativa. Envelheceu a dialogar com ela e nota-lhe, com tristeza e desagrado, que já se vai deixando contaminar com a doença da coerência, um filtro que enubla o olhar.
“Tudo me pareceu mais tacanho: foi como se, no passado, o céu e os edifícios tivessem sido pintados na cúpula de um guarda-chuva bem aberto, e agora a armação se tivesse estragado, e o guarda-chuva fosse fechar-se sobre a minha cabeça.“
Hábil com as palavras, deficitário no expressar do afectos, este menino-homem envelhece acompanhado desta inquietude misturada com nostalgia, uma agitação convulsiva que canalizou para a investigação e o estudo da língua – que é como quem diz da vida e das memórias -, para assim reencontrar na avó as respostas que desmontam tantas das suas dúvidas: o prazer da palavra, sem pensar em coerência, na verdade ou em quaisquer outras obrigações que se atribuem a um escritor.
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