“Vida de Prisão” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2018) é um Retrato que revisita a vida dentro de um estabelecimento prisional, partindo de testemunhos de ex-reclusos. Ao longo de oito breves – mas densos – capítulos, discute-se a “complexidade do universo prisional, composto por uma heterogeneidade enorme de seres humanos – na idade, na nacionalidade, no nível social e cultural, nas histórias de vida, nos crimes praticados, na assunção ou não deles”, através de relatos de permanente tensão, conflito, amor, ódio, (des)respeito, humilhação, num jogo entre a vida e a morte que evoca a palavra crueldade.
A crueldade inscreve-se na natureza humana. É a consciência do mal feito a outrem, afecto puramente negativo, expressão de uma doença que procura alívio através do outro, “para descarregar a raiva e a frustração”. É sinónimo de excesso. Superá-la exige esforço e determinação. É imperativo aprender a viver com serenidade, aceitar as fragilidades e contrariedades com dignidade, o que por vezes se torna difícil na “malfadada sobrelotação das prisões portuguesas” – e num universo de 13.306 presos, dados de Março de 2018, ”dos quais 6% eram mulheres, 15,6% preventivos e 15,8% estrangeiros”.
Quem não sentiu a sua intimidade ignorada, a privacidade minimizada ou a afectividade usurpada, não é capaz de fazer o exercício de viver sem liberdade. Na prisão “vive-se num salve-se quem puder”, numa “privação de liberdade” onde as condições de coabitação são precárias, tensas e vulneráveis: “ …viria a ser colocada numa cela com duas outras pessoas, onde enfrentou uma reclusa complicada, daquelas que viviam lá há muitos anos e que se achava no direito de dar ordens”, ou ainda “O guarda abriu a porta da cela e ouvi lá de dentro: Não queremos aqui mais ninguém. (…) a meio dessa primeira noite, acordaria com alguém que tentava roubar-lhe o maço de tabaco que escondera debaixo da almofada. Engalfinhei-me com ele e ninguém se meteu. Os guardas só deram com a coisa de manhã, quando viram a cara do outro toda partida”. A vivência do sentimento de injustiça, o sofrimento que a legislação não previu, inspira estados de cólera inimagináveis.
Um recluso escreve no seu diário: “No pátio as pessoas vagueiam de um lado para o outro (..). Homens sem rumo, homens sem ideias, sem projectos de vida”. Ociosos. Susceptíveis ao mecanismo de subornos, ao tráfico ilegal de telemóveis, da droga, tabaco ou de outros bens. Os ociosos continuam a atribuir a culpa ao alheio, ao sistema, “por se terem tornando delinquentes e gabam-se dos crimes cometidos no exterior”. Outros lutam contra o ócio, a imprudência, e mobilizam sinergias para (re)organizar a existência caótica, na esperança de melhores dias. Joana, a única mulher que colaborou neste livro, afirma veementemente que “ninguém consegue inserir-se na sociedade se não tiver hábitos de trabalho”.
Afinal, quais são os motivos que levam o ser humano a extrapolar os limites da boa convivência social violando o pacto social? “Vida de Prisão” possibilita uma leitura sociológica, psicológica, social e ética da natureza humana, proporcionando pistas de reflexão.
Pedro Prostes da Fonseca nasceu em lisboa em 1962 e iniciou-se no jornalismo em 1988, na Agência Lusa. Colaborou com o Expresso e as revistas Sábado, Superjovem, Pais & Filhos. Foi coordenador no semanário SOL, conhecendo a realidade das cadeias portuguesas como responsável pela rubrica “Conversas na Prisão”.
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