“Mas o que é que eu quero? O quase irrealizável, a felicidade. Nunca a provei, mas tenho dela uma sede inconsciente, como o animal que instintivamente procura o alimento que lhe convém e que o fará viver.”
Estas são palavras de Genoveva de Lima Mayer Ulrich, mais conhecida como Veva de Lima – nome utilizado para assinar as suas obras literárias –, uma mulher tão extraordinária que chega a parecer uma personagem ficcional, que Joana Leitão de Barros nos dá a conhecer em “Veva: A aristocrata intelectual e excêntrica que desafiou Salazar e os costumes da sua época” (Oficina do Livro, 2022).
Este romance histórico – que também poderia ser descrito como uma biografia ficcionada – assinala a estreia da autora na ficção, depois de anos de dedicação ao jornalismo e da escrita de uma biografia premiada sobre Leitão de Barros, que a levou a investigar a década de 1920, durante a qual Veva de Lima foi uma figura marcante da sociedade portuguesa.
As primeiras páginas transportam-nos até à Lisboa de 1921, à casa de uma mulher da alta sociedade que leva uma vida de luxo, ao mesmo tempo que se interessa por política, economia e cultura. Veva lê jornais, corresponde-se com outras grandes personalidades da época, envolve-se em causas sociais, gere um salão onde são lançados e consagrados artistas, e escreve obras que são sistematicamente menosprezadas pela crítica. Para muitos, ela é “um fenómeno curioso, vagamente ameaçador”: “uma rapariga que se julga capaz de criar caminho que lhe baste”.
Apesar de toda a sua independência, a vida de Veva está intrinsecamente ligada aos sucessivos cargos ocupados pelo marido, Ruy Ulrich – desde professor universitário a presidente da Companhia de Moçambique, gestor da Companhia de Caminhos de Ferro Portugueses, embaixador no Reino Unido e director do Banco de Portugal. Em Moçambique, Veva persegue caça grossa e testemunha situações que a levam a publicar críticas à gestão colonial, pelas quais recebe ameaças de morte. Como embaixatriz no Reino Unido, faz da residência em Londres, “um dos lugares mais elegantes e bem frequentados da cidade”, estimulando as relações diplomáticas com Portugal, mas sem deixar de intimidar os londrinos quando passeia o seu leopardo de estimação pelas ruas.
A história do casal e dos parentes mais próximos é também uma viagem pelo século XX, repleto de epidemias, guerras, recessões económicas, convulsões sociais e intrigas políticas. A autora recria brilhantemente épocas passadas, entrelaçando eventos mundiais nas biografias das personagens e destacando sempre o espírito indómito de uma mulher que voava acima das convenções, quando a ordem vigente pretendia limitar o seu género ao cuidado do lar.
“Não escrevo por vaidade, por narcisismo, por amor da glória, por desejo de aplausos. Escrevo por uma necessidade estrutural do meu temperamento, para que no silêncio vasto que me rodeia, e na solidão moral em que vivo, eu possa, de vez em quando, ouvir-me e encontrar-me – e supor-me um pouco menos só”, anotou Veva. Esperamos que o tenha conseguido.
1 Commentário
Interessante e uma personalidade feminina alem da época em que vivia muito corajosa e destemida uma figura ilustre histórica para nós mulheres..