É, muito provavelmente, a trilogia mais rock and roll que poderão descobrir nas livrarias, ou não fosse a sua autora, Virginie Despentes, uma cartógrafa exemplar da marginalização, com uma obra onde cabem questões de género, sexualidade ou pornografia, apontando para uma revolução sexual e um combate à nova ordem moral. Há quem lhe chame a enfant terrible das letras francesas – ao pé dela, Michel Houellebecq é um menino -, mas por aqui preferimos apontá-la como a mais original escritora francesa dos tempos recentes.
No centro de Venon Subutex (edição Elsinore) está o homónimo Vernon Subutex, um tipo de 47 anos que, apesar dos dentes miseráveis, mantém um considerável jogo de cintura junto das mulheres. Em tempos que parecem agora uma outra vida, Vernon foi empregado, mestre-de-cerimónias e a alma da Revolver, uma loja de discos em redor da qual tudo, mesmo tudo, girava, lugar onde se forjaram amizades e relações que pareciam estar destinadas a durar para sempre – não estavam, claro.
Expulso do apartamento por dever mais de um ano de renda, Vernon puxa da sua lábia e descontracção para partir numa digressão de sofás, sempre com duração incerta. Uma das almas caridosas é Alex Bleach (Athaya Mokonzi), um músico que prepara o seu regresso após mais uma de muitas recaídas – vê em Vernon o seu guru e grande amigo -, e que adoptou o lema dos NA de que o melhor mesmo é ir pensando dia a dia. A verdade é que, nessa mesma noite, depois de aspirarem e varrerem as narinas como esmerados empregados de limpeza, Alex morre de overdose, deixando a Vernon Subutex três cassetes onde se encontra, não apenas a sua música futurista carregada de ondas alfa, como também uma espécie de testamento, que poderá conter informações que deixarão Laurent Dopalet, um bem-posto produtor de cinema, em maus lençóis. À medida que vai saltando de sofá em sofá, perdendo-se nas ruelas da cidade como um anónimo solitário, Vernon tornar-se-à no homem mais procurado da cidade de Paris.
Mas quem é, então, Vernon Subutex, este misto de charme e desencanto, que parece trazer a má sorte a quem o acolhe e que acompanhamos numa descida em lume brando até às profundezas de uma sarjeta? Alguém que desistiu da vida, incapaz de aceitar as muitas e estranhas mudanças que se deram no mundo? Que recusou a tramada vida adulta, feita de cedências, ultrajes, fraldas, impostos, neuroses e idas ao psicólogo? Ou será a cola que nos mantém ligados ao que é fundamental, ao que fomos em tempos e que, a certa altura da linha temporal, descartámos em nome de algo que, muitas vezes, nos ultrapassa? Vernon Subutex é tudo isto e muito mais: é o eco silencioso de todas as nossas falhas e anseios; a memória de um passado adormecido e dos sonhos recalcados; a consciência colectiva que tem nele o seu centro, unida através da sua presença discreta e da música que serve e que é, ontem e sempre, o fio condutor capaz de a todos unir.
A Venrnon junta-se um grupo de personagens memoráveis, com os quais Virginie Despentes constrói uma sinfonia electrizante: A Hiena, uma mulher que ganha a vida a dar cabo de reputações alheias na auto-estrada virtual – e, quando é preciso, de caras e ossos no mundo real; Lydia Bazooka, uma jornalista principiante que sonha com escrever a biografia de Alex Bleach; Xavier Fardin, amigo de infância de Vernon, um argumentista frustrado e que está metido num casamento onde tem de andar em pezinhos de lã; Pamela Kant, uma ex-estrela porno que tem, nas redes sociais, uma legião de seguidores e arautos; ou Sylvie, em tempos a maior brasa do pedaço e agora uma psicótica dos sete costados. Personagens que nos fazem olhar com atenção para a misoginia, a pornografia, a religião, a raça, o neo-fascismo, as questões de género e, sobretudo, para a forma como o capitalismo exacerbado vai tratando de destruir aquilo que há de mais essencial na aventura de ser humano.
Neste olhar algo desalentado para a sociedade moderna, Virgine Despentes não esquece o humor e, sobretudo, a compaixão. Vernon é alguém que perdeu sem arrependimento o comboio da revolução digital – ou que, no limite, ficou preso no vagão onde é guardado o carvão -, e que, aos poucos, vai deixando para trás os seus pertences, recordando-nos que, num tempo não assim tão distante do nosso, já foi mais importante “ser” do que “ter”. “É assim que, contra todas as expectativas, se continua a dançar, no escuro, ao som de uma música primitiva cujo culto parece não querer extinguir-se nunca, no crepúsculo do terceiro milénio”. Bravo, Virginie.
4 Commentários
Que crítica excepcional. Obrigada.
Obrigado 🙂
Comecei a ler o primeiro livro por causa deste artigo. Estou a gostar muito. Obrigado pela recomendação e pela cultura que nos trazem aqui.
Obrigado!!!