Leah Hazard entrega-nos – e entrega-se -, em “Útero” (Vogais, 2024), a biografia de um órgão invisibilizado ao longo dos tempos. A autora propõe um caminho para redescobrir os corpos portadores de um útero: as suas funções, fases da vida, vivências e temperamentos associados – e desvalorizados -, partes essenciais para práticas mais holísticas e integrativas. Leah Hazard aborda, igualmente, a secundarização, a invisibilidade, o estigma e o silêncio que envolve muito do sofrimento associado à menstruação, à gravidez, ao parto, à perda, ao luto e à menopausa.
A norte-americana propõe uma reflexão profunda sobre um órgão historicamente reduzido à sua função reprodutiva, desafiando a visão tradicional de mero receptáculo da procriação, ressignificando-o em todo o seu potencial para o apresentar como um elemento fundamental para a saúde e a identidade das mulheres, sem esquecer questões de género e pessoas cujos corpos carregam um útero não desejado.
A sua análiseé baseada em investigações de factos históricos, entrevistas a quem está na vanguarda e em testemunhos de quem quis partilhar as suas perspectivas, doenças e preocupações, juntando também a sua experiência enquanto parteira. Hazard mostra como as queixas relativas ao útero – de dores menstruais debilitantes a doenças complexas, como a endometriose – são habitualmente desvalorizadas. A negligência é um sintoma da medicina que ainda se pratica, resultado de uma perspectiva que limita o corpo feminino à sexualidade e à capacidade de gerar vida, contribuindo para um acompanhamento médico insuficiente com impactos negativos na saúde das mulheres – essencialmente na saúde mental.
Abordar a menstruação, a gravidez, o parto ou a menopausa apenas como meros marcos biológicos – e não como indicadores de saúde -, ou minimizando a voz das mulheres que se queixam e relatam sintomas, são indicadores do quanto estes tópicos ainda são tabu. A ciência evoluiu nos cuidados de saúde prestados, nomeadamente no parto, no entanto falta ainda muito para uma verdadeira apropriação do corpo feminino pela própria mulher. “Por vezes, é mais fácil não ver, não saber. Fazer o mapeamento do corpo pode ser tão perturbador como empoderador – o conhecimento suscita perguntas com respostas incómodas. No entanto, neste livro, nestas páginas, somos feitos de matéria mais forte e viajamos por ele com a mente aberta. Estamos preparados para compreender o útero e para descobrir onde tudo começou. Paramos. Demoramo-nos. Aprendemos”.

Outro ponto crucial do livro é a crítica à desumanização do parto. Hazard denuncia que o acto de parir é, por vezes, reduzido a um procedimento técnico – mecanizado -, dominado por intervenções – como cesarianas, administração de oxitocina e epidurais –, que privilegiam a rapidez em detrimento da experiência e dos desejos da parturiente. Uma abordagem que gera uma sensação de despersonalização, na qual a mulher pode ser tratada apenas como mais um elemento num processo padronizado.
Mais do que a denúncia, “Útero” combina pesquisa, relatos, dados históricos e testemunhos, apontando inúmeros caminhos de evolução nos cuidados com a saúde feminina, promovendo o empoderamento através do conhecimento e revelando muitas novidades associadas às diversas fases da vida do útero. Uma leitura indispensável para quem deseja compreender a importância de um órgão que é parte da história de toda a humanidade.
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