O tamanho e a espessura de uma Bíblia em edição revista e aumentada, incluindo Velho e Novo Testamento e, ainda, os Evangelhos Apócrifos, numa letra miudinha que, ainda assim, quase bate as 700 páginas. Foi esta a dimensão hercúlea escolhida por Hanya Yanagihara para nos contar a história de “Uma Pequena Vida” (Editorial Presença, 2022). Mais concretamente a vida de Jude e, com ela, a de três amigos que lhe servem de suporte e prolongamento a uma existência tramada, cuja vida “podia ser lida na carne e nos ossos” e que, já como respeitável adulto, se considerava “ingénuo e pouco sofisticado”, um funâmbulo com a tentação de se deixar cair para fora do arame.
É um livro onde a beleza e a dor existem em paralelo – muitas vezes em sobreposição -, para o qual o leitor deverá ir preparado com um estômago forrado e um pacote de lenços de folha dupla. Hanya Yanagihara mostra-nos vezes sem conta uma ferida que teima em reabrir, numa leitura de onde se sai devastado mas, de alguma forma, agradecido – o tal milagre literário que acontece da quando em vez.
No centro da narrativa está o momento em que quatro colegas de uma pequena universidade do Massachusetts se mudam para Nova Iorque, preparados para darem início à sempre tramada vida adulta. Com pouco dinheiro mas ambição de sobra, tentam singrar em universos paralelos: William, o cara laroca do grupo, como actor; JB, com tanto de cruel como de sobredotado, quer ser pintor na disputada cena artística de Manhattan; Malcom, arquitecto frustrado, procura construir os seus edifícios imaginários; e Jude, o centro deste algo improvável quarteto, vai navegando entre as causas sociais e a necessidade de se sentir amparado financeiramente, tentando algures pelo caminho uma solução de compromisso no mundo do Direito.
A história desenrola-se durante décadas, juntando aos avanços temporais várias viagens ao passado, sobretudo ao de Jude, que permitem conhecer como o ambiente familiar – ou a sua ausência – ou os valores recebidos moldaram cada um destes homens, alguns mais do que outros presos à armadilha da memória.
Mesmo que, a dada altura, o leitor se veja inclinado a confrontar Hanya Yanagihara com um suplicante “não batas mais no ceguinho”, “Uma Pequena Vida” é um livro perturbador, intenso, mas ao mesmo tempo belo e catártico, que mostra a amizade como um dos grandes – talvez o maior – pilares da existência humana. Uma viagem para se fazer com o coração nas mãos, e na qual se irão descobrir sinais de trânsito literários tão fundamentais como este: “A vida é assim mesmo e tem mesmo de ser assim: não visitamos quem se ausentou, visitamos os que procuram os seus ausentes”. Se andam à procura de transcendência, “Uma Pequena Vida” leva-vos lá.
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