“Até que um dia, ao abrir um certo livro, encontrei o que procurava. Fiquei ali de pé, por uns momentos, a ler. Depois, como um homem que descobre uma pepita de ouro numa lixeira, levei o livro até uma das mesas. As frases corriam ligeiras pela página fora, havia como que um fluir. Cada uma delas tinha uma espécie particular de energia e era seguida por outra semelhante. Era a própria substância de cada frase que dava forma à página, como qualquer coisa que tivesse sido esculpida no papel. Eis ali, finalmente, um homem que não temia as emoções. O humor e o sofrimento surgiam entrelaçados com soberba simplicidade. O começo daquele livro foi para mim violento, um enorme milagre.”
As palavra são de Charles Bukowski, e o livro em questão é “Pergunta ao pó” (Alfaguara, 2022), escrito em 1939 por John Fante. Fante que, para Bukowski e desde essa epifania literária, “passaria a ser uma influência constante na minha própria escrita”, tornando-se, como escreve Bukowski no prefácio à edição de 1979, “o meu deus”.
Foi o próprio Bukowski que, nos anos 1980, recomendou a reedição dos livros de Fante que, com uma nova geração de leitores, alcançou finalmente – e merecidamente – o estatuto de obra de culto. Por cá, depois da publicação de “1933 foi um mau ano”, “Cheio de Vida” e a edição solta de “Sonhos de Bunker Hill”, a Alfaguara lança pela primeira vez a saga completa de Arturo Bandini, composta por quatro livros: “A primavera há de chegar, Bandini”, “Estrada para Los Angeles” – o primeiro escrito por Fante -, “Pergunta ao pó” e “Sonhos de Bunker Hill”.
Quem procura uma saga sem falhas, onde o tempo seja linear, a árvore genealógica do herói se mantenha inalterável e as conquistas e derrotas pessoais sejam guardadas por ordem num álbum de recortes, irá ter uma estranha surpresa com este quarteto. A idade de Arturo Bandini parece ser mais maleável do que plasticina, a sua família vai-se reinventando entre mortes, ressurreições, acrescentos e subtracções, um pouco como se John Fante tivesse criado, como o fez décadas mais tarde Paul Auster com “4321”, uma saga na qual Arturo Bandini vive quatro vidas distintas, deixando para trás pele atrás de pele – mas mantendo a mesma essência -, e que é uma radiografia de um país destroçado e dos seus mais desfavorecidos.
Em “A primavera há de chegar, Bandini”, mergulhamos nos anos 1930 e na grande crise americana. Arturo Bandini, filho de imigrantes italianos, tem por esta altura 14 anos, os olhos castanhos e meigos de uma mulher, achando-se “o único italiano sardento à face da terra”. O pai, Svevo Bandini, é um assentador de tijolos e, quanto à mãe, vive “sob o jogo permanente de uma doença sem sintomas, de uma dor sem sangue ou ferida”. Uma família a que se somam ainda dois irmãos, e que vive numa pequena cidade do Colorado, que parece estar sempre submersa pela neve.
É o livro onde Bandini se encontra mais no papel de observador, libertando o peso constante da culpa no confessionário, tentando descobrir a diferença entre pecados veniais e mortais e assistindo, na sombra, à desintegração da relação dos pais, enquanto vive as tremuras do primeiro amor e sonha com libertar-se das amarras de um ambiente familiar sufocante e de uma pobreza e miséria que parecem estar-lhe coladas à pele. “Em toda a parte era sempre a mesma coisa, sempre a mãe dele – a pobrezinha, sempre pobre, pobre, sempre essa palavra, sempre dentro dele e à volta dele…”.
Em “Estrada para Los Angeles”, Bandini já não tem pai e os irmãos parecem nunca ter existido. Com 18 anos, vive com a mãe e a irmã em San Pedro, o porto de Los Angeles. Vai agora saltando de emprego em emprego, seja a cavar valas ou a lavar pratos, parecendo ter herdado do pai a apetência pelo constante endividamento. Arturo continua, por esta altura, a mostrar pouco jeito para lidar com as mulheres, desenvolvendo a afronta perante a autoridade e uma clara tendência para o sonho: quer tornar-se escritor. Para isso, vai passando grande parte do tempo nas bibliotecas públicas, obcecado com Nietzsche e Schopenhauer – “livros que a ralé não consegue ler” – e em escrever “Uma Dissertação Moral e Filosófica sobre o Homem e a Mulher”. Alguém que, a ter um cartão-de-visita, diria qualquer coisa como isto: artista, arquitecto, escritor, nada disto.
Na sua busca pelo sonho americano, Bandini vê-se obrigado a aceitar trabalhos miseráveis, como aquele em que se vê atirado para uma fábrica de conservas, onde se pavoneia como um intelectual entre a plebe, não deixando porém de levar para casa a miséria no corpo: “…o meu cheiro assemelhava-se sempre ao de uma canastra cheia de cavalas. Não me largava esse fedor a cavalo morto na berma da estrada”.
Bandini vai, com a ajuda de revistas pornográficas, construindo filmes e imaginando vidas em comum com as mulheres das revistas, a que vai dando nomes e, quando o pecado fala mais forte, a quem destrói em pedaços, atirando os papéis pela sanita enquanto afoga o sentimento de culpa – esse sentimento de culpa permanecerá com ele para sempre. Para além das mulheres, Bandini levará o leitor até à Terra dos Caranguejos Mortos, onde travará um combate épico de sentido único de onde emergirá rei e senhor, revelando o seu lado mais violento antes de partir rumo a Los Angeles.
O primeiro parágrafo de “Pergunta ao pó” vale, só por si, um romance inteiro: “Uma noite, estava sentado na cama do meu quarto de hotel em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, pois tinha de tomar uma decisão sobre o hotel. Ou pagava, ou saía: era o que dizia o bilhete que a proprietária tinha metido por debaixo da minha porta. Um problema bicudo, a exigir toda a atenção. Resolvi-o desligando a luz e metendo-me na cama”.
Ao invés da cidade prometida, Arturo Bandini encontra em Los Angeles uma cidade mergulhada na pobreza, refém de uma crise financeira, passeando-se sem um tostão no bolso mas, ainda assim, mantendo viva a ambição de se tornar “o grande escritor”. Ele que, sendo o maior crítico de si mesmo, tanto nas opções de vida como no ofício da escrita, vai sobrevivendo de laranjas, ocasionalmente roubando uma garrafa de leite e indo à igreja para espreitar as raparigas mexicanas.
Quando recebe, pelo correio, uma valente quantia pela publicação de um conto seu, mostra todo o seu lado esbanjador e quase sempre generoso, seja a comprar roupas caras que lhe causam desconforto, indo a bons restaurantes, envolvendo-se com prostitutas ou emprestando dinheiro que, nos breves instantes em que permanece nas suas mãos, parece queimar-lhe a pele: “Para que servia o dinheiro afinal? De um modo ou de outro, eu acabaria por gastá-lo”.
Com uma brevíssima referência a Hitler e à guerra, “Pergunta ao pó” é o livro onde Bandini se lança numa relação amorosa com Camilla Lopez, uma empregada de mesa mexicana – pelo menos aos seus olhos -, com quem navega numa relação tempestuosa onde a promessa vai cedendo lugar à destruição.
A saga encerra com “Sonhos de Bunker Hill”, o mais breve dos quatro livros, no qual John Fante comete várias proezas – como mostrar-nos os meandros de Hollywood e um mundo assente nas desigualdades sociais. Arturo Bandini, aqui com 21 anos, vai trabalhando como empregado de mesa no bairro de Bunker Hill, em Los Angeles, lugar destinado a imigrantes, bandidos e lunáticos.
É aqui que este ateu, que se dirige constantemente a Deus, perdido numa dicotomia entre o prazer e a religião, irá encontrar a sua voz literária, momentaneamente silenciada com a entrada no guionismo de Hollywood, onde troca a fama por trabalho – não executado – e dinheiro. Montes dele. “Era um homem novo, um escritor de sucesso de Hollywood, sem ter escrito uma única linha”.
Bandini envolve-se, por esta altura, com Helen Brownell – ou Sra. Brownell -, a senhoria uns bons anos mais velha, com quem viverá uma relação amorosa com a dimensão de uma montanha-russa e a amargura sentimental de uma lima. A infância de Arturo Bandini irá ser também abordada, desde o nascimento “numa fábrica de macarrão, na zone norte de Denver”, passando pela masturbação precoce, as efervescentes declarações de amor, o abandono dos estudos, a vagabundagem, os trabalhos menores, as poucas habilidades sociais, a incapacidade de compreender as mulheres ou os livros que lhe mudaram a vida. Este derradeiro capítulo da saga Bandini foi ditado por John Fante, já cego pela diabetes, à sua mulher, e foi publicado em 1982, um ano antes da morte do autor.
Esqueçam a lógica narrativa, o encadeamento temporal ou a lógica ficcional. Atirem-se a este quarteto Bandini e desfrutem de uma das maiores viagens literárias que poderão empreender, na vida, enquanto leitores. Arturo Bandini é uma lenda.
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