“Construir uma vida demora muito tempo, mas basta um instante para tudo desabar”, diz a certa altura Adam, cabeça de casal de “Uma Família Quase Normal” (Suma de Letras, 2019), romance policial do autor sueco Mattias Edvardsson. Esse instante abate-se sobre a sua família numa noite fatídica, como um manto negro e pesado.
Adam é um respeitado Pastor da igreja sueca, e a sua mulher, Ulrika, uma experiente e bem-sucedida advogada de defesa. A filha de ambos, Stella, é uma jovem como tantas outras: acabou de fazer 18 anos e tem a cabeça cheia de sonhos. Com o seu emprego na H&M, está a juntar dinheiro para uma longa viagem pela Ásia, à procura de aventuras exóticas.
Esta fachada cor-de-rosa será abalada por um crime sangrento. Sem que nada o fizesse adivinhar, Stella é presa, suspeita do esfaqueamento mortal de Christopher Olsen, jovem empresário de sucesso, encontrado sem vida num parque infantil.
Edvardsson divide habilmente o livro em três partes, cada uma narrada por um dos membros da família. Começamos por viver a história pelos olhos do Pai, Adam, que na noite do crime encontra a camisola de Stella no cesto da roupa, coberta de manchas escuras. Ele fará tudo para ajudar a sua filha, chegando ao ponto de oferecer um álibi falso, mesmo que essa decisão contradiga o seu carácter e a sua fé de uma forma dilacerante.
Adam sente que, de alguma forma, falhou na educação de Stella. A culpa e a raiva cega para com a situação conduzem-no a uma investigação própria à ex-namorada de Olsen, a perturbada Linda Lokind, que ele acredita ser a verdadeira assassina.
Na secção seguinte assistimos à história pela perspectiva da filha, Stella. É aqui que as coisas começam a ficar mais claras. Nestas páginas ficamos a conhecer Amina, a melhor amiga de Stella, que claramente sabe mais do que deixa transparecer sobre o crime. Entretanto acompanhamos a vida de Stella na prisão, onde continua a aguardar julgamento, confinada a uma cela minúscula.
A parte três é contada pela mãe, Ulrika, e aqui vamos perceber aquilo de que abdicou para ser uma advogada de sucesso. Também a mãe sente a culpa a corroê-la, como um novelo emaranhado do qual não se consegue libertar. Uma vez mais, o autor dá-nos a volta à cabeça até perdermos o norte à história. Esta terceira parte centra-se no julgamento de Stella, onde por fim será revelado o que aconteceu na trágica noite do assassínio.
O autor constrói o que parece ser um livro policial corriqueiro, para depois pôr tudo em causa com os paradoxais pontos de vista e sentimentos que cada um dos membros da família carrega às costas. O livro é um drama familiar muito interessante, onde as personagens são densas e complexas e o lado lúdico não é descurado – as páginas correm nas nossas mãos enquanto tentamos perceber que raio é que se passou naquela noite.
“Uma Família Quase Normal” é, assim, um thriller de tribunal com todos os ingredientes no sítio certo: um crime sangrento, um julgamento tenso e um mistério que nos escapa até à última página, enquanto desvendamos os gumes e arestas que se escondem por trás desta família normal.
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