É comum ouvirmos dizer que a guerra revela o melhor e o pior dos seres humanos, mas Cláudia Andrade mostra-nos, em “Um Pouco de Cinza e Glória” (Elsinore, 2021), que nem sequer é preciso que a guerra chegue até nós. A sua aproximação basta para pôr a descoberto os instintos primitivos que a Humanidade procura ignorar.
A autora, que venceu o Prémio SPA Autores para o Melhor Livro de Ficção Narrativa de 2020, com o conjunto de contos “Quartos de Final e Outras Histórias”, oferece-nos agora um romance multifacetado, cujos capítulos podemos ler quase como pequenos contos, que vão acrescentando pontos à trama em redor das várias personagens.
A aldeia onde todas elas se reúnem é atormentada por rumores acerca de um inimigo que tarda a aparecer. Os relatórios recebidos são “sobremaneira equívocos”: uns descrevem-no “como sendo do tipo clemente e negociador”, enquanto outros falam de “saque, violação e terror”. Certa vez, o alcaide e os seus correligionários esperaram-no uma noite inteira, “com grande dignidade, fardados e em sentido, supliciados de dúvidas e certezas contraditórias”, mas depararam-se apenas com fome e cansaço.
Entretanto, os habitantes enfrentam os seus próprios inimigos, que por vezes residem nas suas mentes. Após o recrutamento dos homens válidos para o combate, restam as mulheres, as crianças, os velhos, os loucos, os incapazes e um ou outro soldado de passagem. No centro da história encontramos uma criança, Ariel, que receia secretamente não possuir a coragem exibida pelo irmão mais velho. Este ansiava por combater, mas foi pulverizado por uma mina antes de ter tido oportunidade de fazê-lo. Na memória do pequeno, permanece viva a imagem de um outro jovem, tão “magnífico e invulnerável” quanto o irmão, mas condenado ao fuzilamento, porque a vontade de viver o impeliu a tentar fugir à guerra. Esta conjugação de exemplos leva Ariel a temer o próprio medo e a perseguir essa “coisa incompreensível e rutilante que é a glória”.
A narrativa transmite uma sensação inquietante de calamidade iminente sob uma aparência de paz, e o espectro de um menino enforcado – que Ariel julga distinguir onde outros só vêem um monte de trapos abandonados num estendal partido – agita-se no horizonte como um mau presságio. Os pais da criança são das personagens mais equilibradas da aldeia, mas há quem use o inimigo invisível para disfarçar homicídios. Há ainda mulheres desiludidas por terem seguido em vão as vias prescritas de acesso à felicidade. Uma é destruída pela estranha maneira que o marido encontra para protegê-la da guerra, outra usa o sexo para se transformar em alguém diferente.
O contraste entre a beleza da escrita e a crueza dos comportamentos descritos faz-nos atentar numa frase específica: “O ódio desfeia até certo ponto, mas quando atinge proporções colossais irradia uma magnífica luz negra”. Iniciada a leitura, os abismos da alma humana em que Cláudia Andrade nos faz mergulhar atraem-nos como um buraco negro, do qual só nos conseguimos libertar depois de lermos o livro até ao fim.
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