Na hora de atribuir o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís, em 2018, o júri não poupou elogios a “Um Passo para Sul” (Gradiva, 2019), considerando-o um romance com um “alcance humano e social mais profundo”, “em que o amor, mas também a violência terrível exercida sobre as mulheres, se constituem em traves mestras do universo existencial das personagens”.
Depois de nos ter mostrado que “o mais difícil do capitalismo é encontrar o sítio onde pôr as bombas”, livro de poesia que foi semi-finalista do Prémio Oceanos também em 2018, Judite Canha Fernandes atirou-se ao romance de forma fulgurante, levando-nos a percorrer quatro arquipélagos atlânticos nos quais o português se faz ouvir: Cabo Verde, São Tomé, Açores e Madeira. Atlântico onde, como se lê na nota prévia, “moram povos de várias margens presos por um fio com sotaque português. Não têm guelras, já que respiram pouco. Têm labores plácidos, cortinas de água e a imaginação um bocado furiosa”.
“Um Passo para Sul” faz do corpo matéria para a criação, num livro com muita poesia lá dentro onde a autora desenha um mapa-mundo feito de pessoas e geografias distintas, onde propõe uma nova ideia de vizinhança, situada nas margens, que prefere muitas vezes a coincidência à racionalização.
A abrir este romance, a narradora que não teve “pele até aos trinta e dois anos” fala das três criaturas que dela se aproximam por todos os lados, “até tudo cair e eu ser pessoa”: Olívia Maria, que poderia ter sido “bordadeira bonita de cortar a respiração”, alguém que havia de ser velha para sempre – a verdade é que já tinha nascido assim; Josué, indeciso entre ficar ou partir de São Tomé, e que desde os seus 27 anos – tem agora 55 – escreve cartas dirigidas a um amor que ainda não conheceu; e Ângela, alimentada a Diazepam, que por uma partida do acaso reencontra o seu ex-marido morto, bem como um segredo que a obriga a um ajuste de contas com alguns dos seus fantasmas.
O livro é todo ele uma sinfonia, e Judite Canha Fernandes tem o mérito de avançar sempre sem nunca perder o pé, numa história com beijos e farpas onde se não se esquece a colonização ou aqueles que cresceram sem pai ou sem saber o seu nome, e que é também um tributo aos livros e (sobretudo) às palavras. Um livro violento que, ainda assim, tem sempre presente a semente do recomeço, num abraço às zonas cinzentas e às muitas contradições do que é ser humano.
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