Descendente de uma família alemã que havia emigrado para os Estados Unidos da América em meados do século XIX, Kurt Vonnegut nunca se considerou verdadeiramente americano — o título da sua última obra publicada em vida, “Um Homem sem Pátria” (Grupo Narrativa, 2022), assim o confirma.
A marginalização estender-se-ia para além da nacionalidade. Rotularam-no de romancista satírico, especialista em humor negro, metaficcionista, autor de contracultura e escritor de ficção científica. Mas Vonnegut nunca foi um homem de lugares comuns.
Estudou Antropologia, enveredou pela escrita técnica, trabalhou num stand de automóveis e, finalmente, tornou-se um autor de sucesso. Bem antes disso, foi soldado e sobreviveu aos bombardeamentos dos Aliados em Dresden e a tantos outros horrores da Segunda Grande Guerra, os quais relatou no seu magnum opus pacifista “Matadouro Cinco”.
No meio de discursos irónicos, ensaios habilidosos e rabiscos sagazes, o escritor e ícone anti-belicista atira em várias direcções, atingindo o âmago de certos vícios americanos como a arrogância, a dependência dos combustíveis fósseis e os infindáveis estímulos à indústria do armamento. Com a mira apontada ao Partido Republicano, Vonnegut lamenta que os norte-americanos tenham tido o triste azar de nascer num país em que a militarização seja sinónimo de progresso, apesar de “não haver plano de saúde pública nem educação pública decente para a maioria”.
Sobre estes e outros assuntos trata “Um Homem sem Pátria”, que chegou ao mercado português por ocasião do centenário do nascimento do autor. Reunindo reflexões e ensaios compostos por Vonnegut nos seus últimos anos de vida, contém textos coerentes porém algo desconexos. É, contudo, uma obra essencial para quem queira conhecer melhor um dos grão-mestres da literatura americana.
“Um Homem sem Pátria” desafia-nos a abraçar o humanismo e a praticar o impossivelmente simples exercício da amabilidade para com o próximo. Entre sugestões de leitura, dicas de escrita criativa e histórias de infância, é natural que alguma da lengalenga pessimista e moralista do velho Vonnegut nos faça deixar escapar, aqui e ali, um ok boomer! (não que o autor seja um boomer, muito menos seja ele maçador). Seja como for, verdade seja dita, ainda temos muito, mas mesmo muito, que aprender com Kurt Vonnegut.
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