Em 1962, uma janela de esperança parecia abrir-se timidamente na União Soviética. Após um parecer oficial de Nikita Kruschev, era publicado no país que mais parecia um continente o primeiro romance onde a narrativa se situava num campo de prisioneiros políticos – um Gulag -, ilustrando a terrível repressão estalinista.
“Um Dia na Vida de Ivan Denissovítch” (Livros do Brasil, 2022 – reedição) até nem seria grande novidade na altura. Dostoievski, por exemplo, havia retratado em “Recordações da Casa dos Mortos” alguns dos temas que habitam o livro de Aleksandr Soljenitsin: a injustiça das condenações, a crueldade, a fome, a luta pela sobrevivência. O que teria então este livro para iniciar o trilho que conduziu Soljenitsin ao Prémio Nobel?
Ivan Denissovítch Chúkov, a personagem central, é um simples camponês, avesso a qualquer espírito revolucionário. O seu “crime” foi o de escapar da prisão alemã e regressar à frente russa, que lhe valeu a acusação de espionagem. Recusar a acusação resultaria em morte, mesmo que os actos de espionagem nunca tivessem sido concretizados.
No campo impera a lei da selva, que começa mesmo antes de o sol se levantar. Entre outros, Denissovítch tem como companheiros um capitão da marinha soviético – preso por receber uma prenda de um congénere britânico -, um crente baptista – preso por ser baptista – e até um espião verdadeiro – um moldavo que trabalhou para os alemães. Impera o engano, a batota, mas sempre dentro das bem estabelecidas regras do jogo. Quem não as respeitar mata qualquer hipótese de sobrevivência num mundo onde, viver um dia mais, ganha o alcance de uma grande conquista.
Aleksandr Soljenítsin conta-nos a história de um dia feliz numa vida miserável. Porém, quando a felicidade máxima se resume a conseguir um prato extra de sopa aguada ao jantar, descobrir um pedaço de metal que se pode transformar numa pequena faca ou comprar um pouco de tabaco, dá-se a transmutação da narrativa da voz da personagem para a cabeça do leitor. Para Ivan, esta é uma história com final feliz, podendo adormecer com um sorriso nos lábios; para o leitor, trata-se de abraçar a insónia e penetrar no lado gelado da imaginação.
Nota (retirada do livro):
A figura de Ivan Deníssovitch foi composta a partir do soldado Chúkov, um companheiro de combate do autor na guerra soviético-alemã (mas que não esteve nos campos), e enriquecida com a experiência dos prisioneiros e do próprio autor quando trabalhou como pedreiro no campo especial. Todas as outras personagens são reais, recolhidas da vida no campo, e as suas biografias são autênticas.
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