Partindo da metáfora “o casamento é como enxertar um ramo no tronco de uma árvore”, Tayari Jones tece brilhantemente essa enxertia e rega-a com os condicionalismos familiares, sociais, profissionais e tantos outros que alteram o curso da vida da vida a dois. No entanto, a praga do racismo abate-se como uma intempérie e faz abanar a árvore recém golpeada.
Celestial e Roy são os ramos de “Um Casamento Americano” (Quetzal, 2022), mas uma América convulsa, um racismo persistente, uma justiça enviesada, Andre e a família de cada um deles, são enxertias anteriores, com raízes bem profundas.
“Já tinha visto pessoas com pais responsáveis (…), mas um homem pai de uma filha é diferente de um homem pai de um rapaz. Um é o sapato esquerdo e o outro, o direito. São iguais, mas não se podem trocar.”
Sabendo que existem coisas que não se podem simplesmente trocar, e que “a emoção humana transcende a lógica, lisa e contínua”, depois de julgado por um crime que não cometeu, Roy tem a sentença lida: 12 anos de prisão ( e Celestial também).
Pode um casamento sobreviver preso às memórias? “O fantasma do meu marido mostrava-se sob a guisa de outros homens, quase sempre jovens, com cabelos muito bem cortados o ano inteiro. Nem sempre partilhavam os atributos físicos dele; não, eram tão variados como a humanidade. Mas eu reconhecia-os pela ambição que se lhes agarrava à pele como água-de-colónia apimentada, a ligeira brisa de poder que agitava o ar e, por fim, uma sensação de luto que me deixava a boca a saber a cinza.”
O desenrolar da narrativa excede as camadas das questões raciais, políticas, legais e morais. As camadas mais finas – e quase imperceptíveis – são as mais fortes, e prendem-se com os detalhes e os momentos, pequenos grandes nadas que tanto contribuem para a construção de um casamento, uma relação em geral, como os momentos em que, também por detalhes, tudo desmorona e a ilusão da memória se esboroa.
“Na biblioteca privada do meu espírito, há um dicionário de palavras que não existem. Nessas páginas, está um misterioso termo que transmite o que significa não ter vontade própria, mesmo quando a temos. Na mesma página, explica-se também que, uma ou duas vezes na vida, darás por ti nua, sob o peso de um homem, e que uma palavra banal te salvará.”
Palavras, meros detalhes. Palavras que fazem toda a diferença. Palavras que não encontram o caminho para dizer aquilo que qualquer um deles sente. Palavras que não se libertam, ou palavras que não têm tempo para se encaixar na narrativa a que deviam pertencer, tal como o ramo.
“O nosso casamento foi um ramo enxertado que não teve tempo de pegar (…), nunca percebi qual de nós era o tronco principal e qual o ramo enxertado.”
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