“Sou feito de pó”. Assim pensa Urbano, protagonista de “Um Cão Deitado à Fossa” (Porto Editora, 2022), logo no início deste livro que valeu a Carla Pais o Prémio Literário Cidade de Almada 2018. Urbano é filho do dono de uma serração cujo ruído ecoa no quotidiano familiar. Pai e mãe são figuras sem nome próprio, unidas numa relação desigual de domínio e submissão: o homem é um ser possante, detentor do peso e da dureza da madeira, bem como da violência da serra, enquanto a mulher é um “rosto que não se ergue nunca”, “uma sombra feita de pó”. Por razões que só conheceremos muito mais adiante, este homem dedica todo o afecto de que é capaz ao outro filho, “desconcertado do juízo e das palavras”, oferecendo apenas desprezo e injúrias a Urbano. É a partir deste núcleo que se desenvolve uma história de desencontros dolorosos e expectativas de felicidade desfeitas, tão tocante que nos leva a crer, mesmo sem conhecer os restantes candidatos, que a distinção recebida por esta obra foi plenamente merecida.
Com inteligência e habilidade, a autora cruza linhas cronológicas e faz contrastar uma narração de profundo lirismo com a linguagem crua das personagens, destacando por vezes os seus pensamentos, ou o discurso directo, através de uma disposição criativa do texto. Uma vez que a acção decorre num meio rural, as palavras combinam-se para unir os ritmos da natureza às suas gentes, originando capítulos com títulos como “Dos pinhais todos que se lhe entornaram nos ombros”, ou “Um céu negro dentro do peito”. Mas a Humanidade, tal como a natureza, é capaz de obliterar a beleza da poesia com grande crueldade, não faltando aqui ódios e ressentimentos venenosos.
O irmão morre, mas Urbano cresce, casa com Ofélia e tem dois filhos, todos vergados à força do velho patriarca. A morte deste é uma libertação: “Foi-se a besta, agora posso ser gente”, pensa o protagonista. Porém, na sua “ânsia de se ver homem com voz” e talvez por falta de um modelo alternativo de masculinidade, Urbano reproduz o comportamento do pai, destruindo o amor da mulher e afastando os filhos. Até a voz reencontrada da mãe é por ele encarada como um incómodo, por isso não tem pejo em tentar relegá-la para a sua antiga posição de “vulto esquecido dentro das paredes da casa”.
Além dos elementos que compõem o retrato pungente desta família marcada por um legado de violência, conhecemos diversas personagens secundárias com as suas próprias histórias. São sobretudo figuras femininas, desde a vizinha solícita, que se dedica a apoiar Ofélia, depois de ter sofrido as suas próprias desilusões, até outras que, não tendo desfrutado de princípios de vida promissores, fazem o que podem para escapar à miséria. Felizmente, os filhos de Urbano provam que certos ciclos viciosos podem ser rompidos, ainda que as cicatrizes dificilmente desapareçam dos seus espíritos. Um círculo fecha-se quando o protagonista percebe ser pó na memória dos filhos que não soube amar, mas a redenção talvez já não chegue a tempo de dissipar as trevas a que se condenou.
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