“Não deixa de ter piada como é que uma criança de nove anos, como eu era, conseguia morrer vezes e vezes sem conta e, mesmo assim, aterrar sempre de pé.”
Muitos são os livros, seja na literatura como na banda desenhada, que falam da perda, do vazio ou de uma vida que, a certo ponto do calendário lunar, congelou, ainda que os anos tenham passado e o corpo se tenha transformado, alheio a uma pausa para a qual ninguém se lembrou de carregar no play. “Toutinegra” (Polvo, 2019), novela gráfica com texto de André Oliveira e desenhos de Bernardo Majer, é mais um desses livros, mas a forma literária de que se reveste, fazendo desta história um thriller poético em crescendo onde tanto cabe a despreocupada juventude como a lixada idade adulta, traz consigo uma abordagem inovadora e um mergulho no poço escuro da alma digno de um salto da prancha olímpica.
A acção decorre entre dois momentos temporais, centrando-se numa pergunta que a jovem Adelaide, a certa altura, coloca a Pedro: “Que memórias te são mais queridas?”.
Pedro e Adelaide são de dois mundos completamente diferentes. Se Adelaide é de uma família de posses, Pedro é criado por uma mãe que não bate bem da cabeça, e que vive apenas no mundo da oração – faz lembrar a mãe da Carrie de Stephen King com um toque extra de alucinação. Uma diferença que faz com que o pai de Adelaide lhe diga que “o Pedrito é bom moço, mas…um bocadinho avariado, compreendes?”.
Estamos em Moinho, um daqueles lugares desertos e condenados ao esquecimento, onde quase todos são velhos. Pedro e Adelaide têm a escola inteira por sua conta, cabendo à professora Ilda o papel de professora, mãe e até de psicóloga, tentando incutir algum gosto pelo saber a dois jovens sedentos de experienciar a vida num lugar que só a eles parece pertencer. É Ilda que lhes irá dar a conhecer “A Toutinegra do Moinho”, um livro que irá virar a vida de Pedro do avesso, lançando ambos num mundo feito de superstições, crendices e medos, do qual faz parte um monstro negro, provavelmente aparentado do demónio, que trata de os avisar que nem todas as histórias acabam bem: “Sou portadora do fim. Toutinegra do Moinho. E sei que trago a má nova”.
Para além da dor, da perda e do assumir da finitude, “Toutinegra” mostra a linha que marca a passagem da adolescência para a idade adulta, uma linha que, em certos momentos, permanece invisível para quem a cruza. Afinal, como Adelaide tão bem o diz, “a imaginação é o castelo de uma criança”, e por vezes as crianças querem ser reis e rainhas para sempre. Belíssimo.
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