“A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo.”
Estas são as palavras de Raduan Nassar que abrem “Torto Arado” (Leya, 2019) e que lhe dão dimensão: amor, trabalho (terra), tempo, denunciando essa vara torta que é uma vida enjeitada à sombra da escravidão.
O livro vencedor do Prémio Leya 2018 é um relato das vozes do Sertão constantemente caladas, gente de olhos postos na terra, na labuta de sol a sol, sobreviventes das tormentas que são as intempéries de cada estação do ano. Embrulhados em lama, tanto no campo como à mesa. Gente sem direito a levantar casa de alvenaria, condenada a uma vida surrada, sempre dependente do favor e do empréstimo.
“O chão das nossas casas e dos caminhos da fazenda eram de terra. De barro, apenas, que também servia para fazer a comida de nossas bonecas de sabugo, e de onde brotava quase tudo o que comíamos. Onde enterrávamos os restos do parto e o umbigo dos nascidos. Onde enterrávamos os restos dos nossos corpos. Para onde todos desceriam algum dia.”
A pobreza, a vida de empréstimo e o trabalho árduo da terra são-nos narrados por uma irmã dentro da voz da outra. Dito assim parece estranho, mas desde cedo um acidente muda o curso de vida de Belonísia e Bibiana e, mais tarde, é a luta pelo desejo do fim da escravidão que lhes muda novamente a vida, obrigando-as a assumirem vozes diferentes.
Enquanto as vozes se cruzam, conhecemos a dura realidade da roça de Água Negra, as suas entranhas de barro e as personagens que gravitam em torno do pai das meninas que, na sua paternidade ampliada, acode aos aflitos da comunidade. Zeca Chapéu Grande é um curador, um místico e a personagem mais intrigante. Salu, a mãe, também é descrita de forma curiosa. Aliás, um detalhe soberbo neste livro é o autor conseguir, em poucas palavras, criar cenários e descrições das personagens fascinantes.
“Meu pai não era alfabetizado, assinava com o dedo de cortes e calos, de colher frutos e espinhos da mata.”
O sofrimento e o serem reféns de um passado de escravatura moldará o destino de ambas as irmãs, mas também a luta pela mudança – sejam as pequenas mudanças, no seio da comunidade, ou as que se desejam mais além, num futuro mais longínquo. Ainda assim, o sofrimento e o silêncio pautarão tanto a vida de Belonísia como a de Bibiana. É
nessa demanda de superar o rancor que o leitor se vai embrenhando e entranhando na terra tão presente neste romance.
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