Foi um, em 2018, um dos grandes livros com edição nacional, que por aqui recebeu honras de melhor livro de literatura traduzida do ano. História de um amor imperfeito, “Berta Isla” movia-se entre Londres e Madrid para nos contar a vida de Berta Isla – sobretudo esta – e de Tomás Nevinson. Uma vida atravessada por segredos onde o desaparecimento e a autodescoberta caminhavam lado a lado, normalmente revelados no silêncio do que nunca era dito – o que era, quase sempre, tudo. Um romance misterioso, apaixonado, inquietante, que desafiava o leitor, onde quer que se encontrasse na linha temporal, a deixar para trás uma história que merecesse ser contada.
Chega agora a vez de Javier Marías dedicar toda a atenção a “Tomás Nevinson” (Alfaguara, 2021), num romance que opera uma reflexão profunda sobre as nossas acções, valores e códigos morais, como que para nos colocar numa situação-limite com um certo toque de vidência: e se fosse o leitor, o que faria?
Javier Marías começa, aliás, por recuar uns valentes anos na linha temporal, falando-nos de alguns dos homens que tiveram, ainda que sem então o saberem, o poder de mudar a História de milhões de seres humanos. Isto por terem sido colocados frente a frente, fosse na mesma sala ou através de uma mira telescópica, com Adolf Hitler. Algo que, ainda que de forma transviada, estará nas mãos do reformado Tomás Nevinson, que acusa a rotina, dá um pontapé no tédio e decide, mordendo o isco de Bertram Tupra, “um artista da calúnia”, regressar aos Serviços Secretos que tão mal o trataram.
Uma missão que puxa pelo seu mais espanhol, acabando por se instalar numa cidade algo remota do Noroeste de Espanha onde tem, de entre três mulheres, indicar qual delas terá participado em atentados – tanto do IRA como da ETA – nos anos oitenta.
Javier Marías avança neste romance numa faixa de duplo sentido, quase de heteronímia, jogando com os tempos verbais e revolucionando a narração quando esta faz pisca e muda de Tomás Nevison para o seu duplo – ainda que, porém, não haja aqui qualquer vislumbre de Dr. Jeckyll e Mr. Hyde. O que se sente, durante todo o romance, é a permanente inquietação de Nevinsón, questionando-se sobre se o tempo poderá servir de catalizador moral e se, num mundo de cinzentos, as noções de bem e de mal poderão ser mutáveis ou transformadoras no ser humano, ainda que a desconfiança pareça ser grande: “Nunca se sabe quando alguém extermina o que foi. Nem sequer se sabe se isso é viável, teria de se perder a memória, perdê-la absolutamente”.
Javier Marías aproveita o salto a Espanha para falar, ainda que a geografia possa ser alargada um pouco a todo o globo, do alastramento da corrupção ou dos déspotas habituados desde cedo a mandar, olhando com algum saudosismo para o século XX perante as ideologias dos tempos modernos: “…são tempos que julgam e condenam os pensamentos, as intenções e as tentações, os do século passado não eram tão histéricos nem autoritários. Aquela noite pertencia ainda por pouco ao século xx, qua a cada dis nos vai deixando saudades”.
Trata-se de um livro bem mais pessoal e reflexivo que o anterior “Berta Isla”, no qual Marías se mostra pessimista sem cair no desespero, mas onde aproveita cada brecha para nos mostrar, por entre as abertas de um livro onde a tensão se mantém até final, a bitola moral e os valores que o movem. Pelo caminho, não deixa de colocar no sítio tanto o IRA como a ETA, responsáveis pela morte de tantos inocentes: “a ETA fazia-se passar por uma organização esquerdista e «do povo», mas a verdade é que era antiquada, selectiva, elitista, conservadora, tão alérgica ao progresso como os padres, e absolutamente ditatorial no seu espírito e nos seus planos. Tal como o eram na Irlanda do Norte os dois grupos extremistas, o IRA e os paramilitares unionistas – tornava-se difícil dilucidar qual era o pior e o mais nocivo. Todos concordavam em desprezar as pessoas, em estar dispostos a matá-las arbitrariamente e em dar cabo das vidas dos jovens que atraíam e treinavam; nas suas ânsias de dominar os cidadãos e obrigá-los a aceitar o que eles («uns quantos«) decidissem e quisessem”. Encerrado este díptico, não restarão dúvidas ao leitor. No meio de tudo isto, Berta Isla é sem dúvida a nossa rainha e o nosso compasso moral.
2 Commentários
Maravilhoso.
Neste livro esta la tudo.
Mas penso que se deve ler primeiro Berta Isla. No fundo complementam -se.
Javier Marias, uma perda maior.
Sim, além de Berta ser também a maior das personagens.