Estamos habituados a vê-la pisar os palcos do teatro e a entrar-nos em casa pela televisão no papel de actriz, mas Ana Saragoça dá também cartas como escritora, como é disso prova o seu romance de estreia “Todos os dias são meus” (Planeta, 2018), lançado em 2012 e reeditado agora pela Planeta.
“Um prédio. Um crime. Vários suspeitos”. É desta forma que se resume uma história a várias vozes, capaz de absorver o leitor da primeira à última página, com um final que se impõe de forma surpreendente.
Mário de Carvalho assina o prefácio e destaca, desde logo, que o desafio da autora — eximiamente superado, diga-se já — foi “dizer o máximo com o mínimo de palavras, de ampliar e aprofundar a expressividade através da concisão, em termos que chegam a ser arrebatadores, despertando a vontade de mais ler, chegar adiante”.
Com pouco mais de cem páginas, “Todos os dias são meus” é daqueles livros que despertam um sentimento duplo no final: por um lado, o desejo de que a aventura literária (de tão boa) tivesse durado mais; por outro lado, o conforto de saber que nestas breves páginas está lá tudo (e é aí que reside a magia e o encanto).
Empolgante, irónico, repleto de inteligência e humor, este é um livro para se ler de um só fôlego, não só pelas breves páginas mas, sobretudo, pela forma como a autora eximiamente articula a narrativa. Sem aviso prévio, assumimos o papel de polícias investigadores, em pleno interrogatório porta a porta a todos os moradores do prédio onde ocorreu o crime: uma jovem solitária assassinada no elevador. Mas tudo isto está subentendido, já que apenas lemos a voz do interrogado. O melhor de tudo? As vozes, apresentadas em jeito de retrato irónico da sociedade portuguesa, que tão facilmente reconhecemos.
Desde a porteira que diz que não sabe nada e não se mete na vida de ninguém mas “sabe” tudo, os ‘cranianos’ que afinal são moldavos, o senhor engenheiro divorciado que enche a casa de mulheres – e a sua namorada artista -, os gémeos que passam as noites a brincar com o elevador, o jovem do Norte que veio à cidade vender óculos, até ao idoso solitário e sua empregada. Pelo meio surge a voz da Razão: a chave para a resolução do crime e o lado introspectivo e íntimo da narrativa que nos toca.
Para os amantes de livros, a cereja no topo do bolo surge já perto do fim, mas seguramente não será esquecida:
“Tive de optar entre os dois mundos — o lá de fora e o dos livros. Para manter algum gosto pela vida e aquilo que eu sei que é a minha sanidade mental, independentemente do que digam todos os tratados de psiquiatria, optei por aquele que, além de nunca me desapontar, me proporciona um manancial infinito de vivências. Nunca me arrependi. A meio da noite, e das insónias, olho para as prateleiras e sinto-me rodeada de um exército de amigos.”
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