A tradução de um livro coloca-nos sempre questões hermenêuticas, nem sempre fáceis de solucionar. São opções. “Terra de Ninguém” (Kalandraka, 2022) é o título português de “El Gallinero”. Os editores portugueses justificam a opção dizendo “os excluídos e os mais desfavorecidos da nossa sociedade só podem aspirar a viver neste tipo de lugares”. El Gallinero é um dos bairros da Comunidade de Madrid, considerado por muitos o maior bairro da lata da Europa. “Durante mais de vinte anos, este local constitui o núcleo de Canãda Real, o maior assentamento de bairros de lata da Europa, onde chegaram a viver cerca de trezentas crianças e respetivas famílias em condições muito precárias”. Há poucos anos iniciou-se o seu desmantelamento. Algumas famílias foram realojadas numa “tentativa de alcançar uma solução digna para os seus habitantes”, mas a situação está longe de se encontrar resolvida.
“Terra de Ninguém” é um livro comovente, difícil de esquecer. A ilustração, num traço hiper-realista, conduz o leitor numa visita ao bairro de lata, como numa reportagem que lança um grito de alerta aos políticos – e a nós todos – para que estas famílias, estas crianças, não sejam esquecidas. Alimentando a esperança, elevando as expectativas que novas e melhores oportunidades abracem estas pessoas, que o mundo seja, efectivamente, mais inclusivo.
A narrativa é conduzida por um jovem rapaz, morador no bairro, consciente das condições de habitabilidade e da precaridade, assinalando os perigos: “ratazanas, seringas e sobras de fogueiras faz parte do dia a dia”. Metamorfoseando a vida, o espaço e o tempo, em “Terra de Ninguém” as brincadeiras circenses, a imaginação e a criatividade dão ânimo e coragem à vulnerabilidade dos dias. Aqui, todos sabem caminhar entre vidros, uma arte só para grandes estrelas de circo. Aqui, todos são artistas. O pai é mágico, “há muito que anda a preparar o Grande Truque. Para tal, precisa de uma série de candeeiros e lâmpadas especiais. É um segredo”. A mãe, mulher-bala, sonha alcançar a Lua.
Um dia o bairro fica sem luz, e em breve terão de procurar um novo lugar para viver. Há medo, mas também há esperança. Como serão os novos vizinhos? Haverá sítios para os cavalos? Haverá casa de banho para cada família? Uma história que deverá ser contada e (re)contada vezes sem fim. Para que os mais jovens se tornem pessoas solidárias e inclusivas. Para que saibam que a imaginação nos dá esperança e fortalece a arte de sonhar. Para conhecerem as palavras resiliência e audácia. Um excelente livro, para ler e dialogar (e ao qual regressar por várias vezes).
María José Floriano, madrilena, é licenciada em Comunicação Audiovisual, edurante anos foi jornalista. Actualmente, dedica-se à sua faceta literária enquanto escritora, dando conferências e oficinas de escrita e desenvolvendo actividades de criação e animação à leitura, através de encontros e clubes de leitura para públicos de todas as idades. A autora dedica este livro “ao jornalismo, ofício trémulo. À infância, no seu olhar vivem todas as artes”.
Frederico Delicado é licenciado em Belas-Artes pela Universidade Complutense de Madrid. Iniciou a sua trajectória artística e profissional em 1970, através da criação de materiais audiovisuais e trabalhos para a imprensa. Participou em exposições de pintura e escultura. É, ainda, autor de vários livros destinados ao público infantil e juvenil.
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