Javier Cercas, escritor espanhol largamente premiado – Prémio Llibreter 2001, Prémio Cidade de Barcelona, Prémio da Crítica do Chile, Prémio Salambó, Prémio Cidade de Cartagena, Prémio Qué Leer, Prémio Extremadura, o Prémio para a melhor obra de ficção estrangeira em Inglaterra e, entre nós, com o Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes d’Escritas 2016 pela obra “As Leis da Fronteira” -, habituou-nos e obrigou-nos a pensar sobre a guerra, em particular sobre a guerra civil espanhola. Poderão referir-se, como exemplos, o muito conhecido “Soldados de Salamina” (2001), que deu origem à novela gráfica editada pela Porto Editora em 2020, ou “A Velocidade da Luz”, a história de uma amizade que questiona a estupidez da guerra e do êxito. Quando “Terra Alta” (Porto Editora, 2020) – Prémio Planeta 2019 – nos é apresentado como um romance policial, a curiosidade duplica: como será um thriller escrito por Javier Cercas?
Melchor Marín é um jovem delinquente com nome de rei mago, salvo do seu negro destino, na prisão, por Guille, um francês que, numa vida anterior, tinha sido um empresário de sucesso, até resolver um imprevisto conjugal à martelada. O “Francês” que, numa sessão em que levaram à prisão um romancista, no meio do que parecia uma grande iniciativa dedicada a quem está enclasurado, resolve partir a loiça toda: “E sabe porque é um farsante? – insistiu. – Porque só diz mentiras. Você não veio aqui ouvir-nos ou solidarizar connosco e toda essa merda que nos disse. Você veio olhar para nós como se fosse um jardim zoológico e, nós, animais, e para depois voltar para a sua casa muito feliz, com a sua boa consciência de esquerdista exemplar a brilhar como um espelho”.
Uma atitude que conquista a atenção de Melchor, a quem o Francês oferece um exemplar de “Os Miseráveis”. Depois da leitura do livro de Victor Hugo, tudo se transforma na vida de Melchor. Javert deslumbrou-o, alguém que personificava a virtude disfarçada de vício, a virtude secreta: a verdadeira virtude. “Acabou o romance emocionado, com a certeza de que já não era a mesma pessoa que o começara a lê-lo e de que nunca mais voltaria a ser”.
Depois de sair da prisão, Melchor decide tornar-se polícia. E é como agente da lei, depois de um acto heróico nos atentados terroristas de Barcelona e Cambrils em Agosto de 2017, que se retira para a Terra Alta, cenário da Batalha de Ebro, a mais sangrenta da Guerra Civil de Espanha, onde o esperariam uns tempos mais tranquilos e uma vida tão boa que a sensação era a de que não lhe estava destinada. O homicídio de um casal de octogenários, os ricos da terra, e a persistência obsessiva de Melchor pela resolução de um crime do qual os seus superiores desistem, desarruma uma vez mais toda a sua existência.
Nesta “Terra Alta” residem as fatalidades dos menos e dos mais favorecidos, as feridas ainda por resolver da guerra civil e os pesadelos que continuam a desassossegar, mas também os conflito actuais representados por um sargento independentista, defensor aguerrido da sua Catalunha. Como pano de fundo surgem “Os Miseráveis”, que tanto servem para salvar vidas como para partilhar o casamento e dar o nome à descendência; ou, igualmente, a essência da leitura: “Na realidade, não há dois romances iguais nem duas pessoas que tenham lido o mesmo romance. Nem sequer Os Miseráveis é igual a Os Miseráveis. Volta a lê-lo e verás”.
Javier Cercas mostra como o ódio pode moldar o interior e a existência de um ser, transformando-o num sentimento que toma conta e conduz uma vida inteira. Como é dito a Melchor, “as verdadeiras feridas são outras. As que ninguém vê. As que as pessoas trazem em segredo. São essas que explicam tudo”.
2 Commentários
Já li este livro e gostei muito. Tenso por base uma história policial, é na verdade sobre o crescimento pessoal relatando do alguém que tinha todas as condições para seguir a via do crime mudou de rumo de forma surpreendente.
Olá, olá,
excelente opinião! Foi uma leitura muito apreciada.