A crónica ocupa um lugar incerto entre o jornalismo e a literatura: por um lado, tem um tempo de vida tão curto quanto o da revista ou jornal onde é regularmente publicada, perdendo-se depois na espuma dos dias; por outro, transcende a função meramente informativa, exibindo frequentemente uma marca autoral e um conteúdo literário. Talvez pressentindo esta ambiguidade, Manuel António Pina definia as suas crónicas como “jornalismo com saudade da literatura e literatura com remorsos de ser jornalismo” – uma definição essencialmente auto-depreciativa, pois o autor considerava que a principal finalidade das suas crónicas era, tal como fatalmente todos os jornais, a de fornecer papel para embrulhar peixe no dia seguinte.
“Tenho Cinco Minutos para Conta Uma História” (Tinta da China, 2017) reúne um conjunto de crónicas radiofónicas inéditas do jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco (1937-1995), lidas aos domingos de manhã nos estúdios da Radiodifusão Portuguesa durante os anos pós-revolucionários de 1977 e 1978. E, apesar da volatilidade das palavras ditas ao microfone, esfumando-se no éter sem sequer atingir a duvidosa honra de acondicionar víveres, o seu autor punha nelas o mesmo cuidado que colocava na prosa e na poesia que deixou publicadas, ou na escrita quotidiana para os jornais que foi a sua vida. Mesmo destinadas a durar apenas cinco minutos, as crónicas faladas de Assis Pacheco mereciam manifestamente durar mais, pelo que se saúda vivamente a sua publicação.
E do que fala o cronista? De nada em especial, assumiria desassombradamente o próprio. Assis Pacheco alterna entre a crónica memorialista e a crónica do quotidiano, revelando-se exímio na nobre arte de “chalacear sobre coisíssima nenhuma” (p. 178). Coimbrão de nascimento, o autor recorda a sua infância na cidade dos estudantes e dos futricas, entre emocionantes partidas de futebol com botões, derbies intensos entre a Académica e o União de Coimbra, almoçaradas com os tios de Sangalhos ou memórias ternas da professora primária que lhe ensinou que havia constelações e galáxias e que o mundo não terminava na Figueira da Foz.
Galego de ascendência, revisita a terra onde estão as suas origens, medita sobre a diáspora nem sempre bem compreendida do povo galego, recorda a infância de misérias do seu avô Santiago e a rocambolesca história de um ajuste de contas de pistola em punho. Lisboeta por adopção, passeamos pelo Bairro Alto dos jornais e travamos conhecimento com Dinis Machado, assistimos às cumplicidades espontâneas que se estabelecem entre os passageiros de um eléctrico, observamos a pobreza envergonhada que a cidade esconde e revivemos na redacção de um jornal o dia em que a liberdade triunfou e os censores tiveram de guardar, para sempre, os seus sinistros lápis azuis. Jornalista de ofício, acompanhamo-lo em viagens à quente Argélia de Camus, à fria Dinamarca em que o sol nasce às três da manhã, à Alemanha para recolher notas para uma sociologia do hotel, à Itália para lamentar a sua vida de andarilho.
Num tempo dominado pela escrita a metro e a peso, torna-se refrescante (re)encontrar uma voz que, com frases bem medidas e palavras certeiras, consegue contar uma história. Uma voz que, ao contrário de outras literaturas descartáveis, é audível e ficará a reverberar durante muito tempo na memória do leitor.
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