Em vários romances de espionagem, as ideologias políticas constituem uma motivação poderosa para os agentes secretos, mas Jorge Mathias, protagonista de “Tempo de Fuga” (Porto Editora, 2021), de Amadeu Lopes Sabino, é um espião muito pouco convencional. Filho único de um casal burguês desavindo, possui uma cultura, uma imaginação e um gosto pelo secretismo que o afastam de uma vida confortável como funcionário do Ministério da Economia do Estado Novo, onde ascendeu graças à discrição e aparente falta de ambição. Ainda jovem, aderiu ao Partido Comunista, porque “a filiação numa organização secreta anti-salazarista fazia parte da iniciação de um adolescente com aspirações de liberdade e aventura”. A militância não é muito convicta nem produtiva, mas basta para ser denunciado à PIDE, o que torna recomendável a fuga de Lisboa.
Para sua sorte, travara previamente conhecimento, numa festa de família, com um conselheiro militar da embaixada da Espanha franquista em Lisboa, a quem começou a transmitir relatórios sobre a política portuguesa. Os dados são pouco importantes, mas Mathias consegue empolá-los, de maneira a sentir-se um “mastermind da política nacional” e a assegurar, em troca da sua colaboração com os serviços secretos espanhóis, uma remuneração que lhe resolve “ocasionais problemas de consciência, ideológica, cívica, patriótica, etc”, ao mesmo tempo que lhe permite praticar um dandismo moderado.
Por intermédio destas ligações contraditórias, consegue sair de Portugal e atravessar Espanha e França, com destino a Berlim Leste, na República Democrática Alemã, para ocupar uma posição de redactor de língua portuguesa na Radio Berlin International, a partir da qual prosseguirá as suas supostas actividades de espionagem.
O que se segue é uma sequência rocambolesca de acontecimentos que sugam o anti-herói para uma irrealidade cada vez mais perigosa. De início, encontra paixões suficientes para animarem os seus dias, e a “terra de ninguém identitária” em que as suas identidades falsas o colocam não lhe é de todo desagradável, mas acaba por se perder num labirinto onde os indivíduos se desdobram em múltiplos papéis, por vezes opostos. Em seu redor, as fronteiras ideológicas esbatem-se, com as ditaduras, tanto a comunista como a fascista, a revelarem ser reflexos uma da outra, cada qual com a sua polícia política e o respectivo exército de informadores. Ironicamente, a conspiração que imaginou e descreveu aos seus superiores traça um círculo completo sobre o tecido da realidade, dando a volta à Europa e regressando para atormentá-lo, ao ponto de lhe colocar a vida em risco.
A narrativa, repleta de referências musicais, políticas e filosóficas, nem sempre é fácil de acompanhar, mas isso parece fazer parte do efeito pretendido, tendo em conta a duplicidade de papéis que as personagens desempenham e a ironia das situações daí decorrentes. Terminar esta leitura é como concluir um jogo de xadrez intelectual, que nos faz pensar na nossa história recente e nas convoluções do mundo em que vivemos.
2 Commentários
Uma boa leitura, que faz justiça ao livro
Agradecemos as suas palavras. É óptimo sabermos que um autor sente que fizemos justiça à sua obra.