Seja em aventuras literárias como “Última Paragem, Massamá” ou “O que não pode ser salvo”, na pele do intrépido Irmão Lúcia, puxando o cabo que alimenta o delírio televisivo ou fazendo bonecos para a literária Ler, Pedro Vieira tem mostrado um olhar apurado, mordaz e humoristicamente letal sobre a sociedade portuguesa, os seus dramas e tragédias, assumindo-se como um “vampiro de terceiros” que frequenta ruas, vielas e transportes públicos em busca de um pescoço de matéria-prima.
“Sou só eu que…” (Objectiva, 2019), editado na recta final do ano passado, é uma antologia de personagens e comportamentos que, em certo ponto do calendário existencial, terão levado também qualquer leitor a questionar-se diante dos seus botões: sou só eu que? Sossegue, caro leitor, não está sozinho neste despertar de instintos assassinos que ameaçam fazer de si um Dexter Morgan tuga.
Entre muitas personagens de carne e osso, cada uma com direito a uma ilustração ao estilo de um cartoon a preto e branco da autoria do próprio autor, estão presentes o apanhado do clima, que “adivinha bátegas e ventanias com um simples chiar da rótula, um modesto espasmo do cotovelo, um assomo gelado na cervical”; o beto de esquerda, espécie que contraria as regras da evolução e cospe interiormente “na supremacia das botas Doc Martens sobre os sapatos de vela”; a mamã blogger, “especialista em fraldas, sopas, decorações de interiores e convulsões, amamentação e febres altas e baixas, parto, o pré, o pós e o durante, sexo na gravidez, bem-estar e cuidados de beleza, brinquedos nórdicos, festas para bebés e papas instantâneas, fitas para cabelo inexistente e mindfulness em miniatura. Pontos de exclamação! Muitos!! Demasiados!!!”; ou o indie listener, alguém com a lição bem estudada: “assim que a banda dá concertos para mais de 23 espectadores, tem destino traçado: trata-se dos novos Coldplay”. E, last but not least, o próprio leitor, que, vai-se a ver, “tanto escarnece de terceiros como dá ares de glacial superioridade, sem considerar a existência de espelhos e muito menos de autocrítica”. Afinal, desde o começo do mundo que vamos assobiando para o lado a mesma cantiga de escárnio e maldizer.
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