“A poesia pode sobreviver. O corpo é que não. De qualquer forma a juventude não se tem. A juventude conquista-se. Enquanto se tem corpo.” – Helder Macedo ao Observador
Como quase tudo e todos que gravitam em torno da Poesia em Portugal (excepto os seus verdadeiros cultores, os poetas e dizedores, os desconhecidos que o fazem por carolice e amor à sua Arte), o chamado “grupo do Café Gelo” foi-o sem o querer ser, assim como quase toda a quase hagiografia que lhe surge associada, esquecendo-se tantas vezes a espuma daqueles dias em que a palavra e a expressão artística se encontravam esmagadas pelo idoso que pisava todo um País e tardava em cair da cadeira. Sobra a Arte que produziam e trocavam entre si incessantemente, quando tudo conspirava para que se rendessem à modorra da submissão.
A ironia é que os próprios sempre renegaram essa glorificação, como atestam os sobreviventes dessa geração, especialmente Helder Macedo. Foi a ele que José Manuel Simões entregou em mão um envelope de papel com as palavras “Sobras Completas” (Abysmo, 2016), onde constavam os textos que compõem este opúsculo da Abysmo, um aperitivo para a edição já anunciada de um “amplo volume sobre o “Grupo do Café Gelo” (…) em preparação para ser publicado em breve. As sobras de todos nós ficarão mais completas.”, revela-nos o intelectual no Prefácio.
Quanto ao autor, José Manuel Simões (JMS) foi o único que deixou o breu de Portugal pela luz de Paris para não mais regressar, ao contrário de todos os seus contemporâneos exilados no seu próprio País durante o resto das suas existências. Cesariny só agora, dez anos depois da sua morte, teve o féretro que desejava e que tanto fez por merecer. “Mais vale tarde do que nunca”, dirão alguns. A resposta: Eusébio no Panteão Nacional, meses depois da sua morte. Caso encerrado.
JMS deixa-nos uma obra diversa, enquadrada em capítulos distintos, desde a produção poética (“O Mar Ausente”), a tradução (“Artigos de Importação”) e à prosa (“Coisas Prosaicas”). Em todas as suas facetas mostra-se um hábil artesão da palavra, e o lamento é apenas que a obra que agora nos chega não seja mais extensa, porque haveria com certeza em si muito mais que deixar para a posteridade. “Testemunho de um grande poeta que deu aos outros poetas a sua poesia, em vez de ser ele próprio a escrevê-la.”, como revela António Barahona, o outro sobrevivente dos infames do Gelo. Mas aconteceu a Vida, onde as escolhas se impõem à Arte, nem sempre suficiente para sobreviver ou sequer apaziguar a inquietude, que ardia nos cigarros sucessivamente acesos que consumia e acabaram por o consumir.
“Há poetas que escrevem uma obra. Outros são a obra que poderiam ter escrito. Quando estes morrem, as suas obras ficam completas. O que deixarem escrito são as sobras.”, prefacia Helder Macedo. Esta é uma das “Sobras” de José Manuel Simões. Como seria a sua obra-prima?
Pleno Vácuo
Repleto no oco do que ao longo
dos braços que o não contêm
se escoa, perde e anula,
o estar presente é não já acto
mas dádiva, porque ao não ter
dou de mim o espaço, emblema
de nos ouvidos e no sangue
poder conter amor, sexo, distância
a pôr entre os que para sempre
e desde sempre sabem
qual o longe de ter ao pé
a solidão que os move e excede
e não dá ao corpo e sossego
de abandonado se jazer e imóvel
dizer não à eternidade.
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