“Só Acontece aos Outros relata alguns casos de violência que observei no decurso do meu trabalho de jornalista. (…) Relendo esses textos, notei que entre eles havia um elo comum. As figuras centrais destas histórias são mulheres, jovens e crianças. Hoje, penso que não se trata de mera coincidência. Na nossa sociedade, as mulheres, os jovens e as crianças são seres menores e menosprezados. Só por si, eles são as vítimas privilegiadas da violência.”
Desde sempre, a violência e a agressividade estão associadas ao ser humano. Mais importante do que viver, eram comportamentos necessários para se sobreviver. Por se tratar de instintos presentes bem antes da organização da sociedade como a conhecemos actualmente – basta olhar para a época da Idade Média, por exemplo –, o amor e a afeição necessitaram de ser incutidos no ser humano. Os elos mais fracos da sociedade – mulheres, jovens e crianças – continuam a libertar-se da violência a que são sujeitos. “Só Acontece aos Outros – Histórias de Violência” (Sibila Publicações, 2017), de Maria Antónia Palla, traz aos leitores a violência sentida por esta camada da sociedade portuguesa nos anos 70.
Das reportagens publicadas na época, pouco ou nada foi alterado. A excepção incide em duas novas histórias acrescentadas, com uma delas a ocorrer em 2017. Em poucas palavras, Maria Antónia Palla retrata o lado mais negro do ser humano, com a perspicácia que uma boa jornalista deve ter: de forma directa, apresenta pessoas com capacidade para assassinarem e anularem os elos mais fracos à sua volta, com uma agressividade intensa a palpitar. A começar pela morte de uma menina – Maria Isabel –, noticiada como sendo um ataque de lobos, ou pela violação de uma idosa por um jovem – “A velhice é um peso morto numa sociedade que sacralizou a capacidade de produção e a juventude. (…) Viola-se sempre o mais fraco, no intuito de rebaixar física e moralmente a pessoa mais fraca.” -, terminando com a história de uma jovem mulher, com um passado de abuso sexual pelas mãos do seu tio, abandonada por contar a verdade ao seu pretendente. Esta última reportagem, com data de 2017, é um dos momentos em que, sem o leitor se aperceber, o presente se mistura com o passado.
Torna-se incrível, e lamentável à medida que se avança na leitura de alguns textos, que muito pouco se tenha modificado. As leis apareceram na sociedade portuguesa, em especial no pós-25 de Abril, mas as mentalidades continuam em constante mudança – com poucos progressos à vista. Mas nem tudo é negativo nas reportagens publicadas pela autora: a despenalização do aborto foi uma das grandes vitórias, em 2007, para as mulheres. Em final dos anos 70, jovens mulheres – com famílias já formadas – eram chamadas a julgamento no tribunal por abortarem: decisões, na maioria das vezes, tomadas para não terem crianças indesejadas. Um crime que, até há pouco tempo, destruíam as mulheres e as suas famílias. É uma dessas histórias que Maria Antónia Palla apresenta, colocando o leitor num passado chocante e não muito longínquo.
“Só Acontece aos Outros” é, acima de tudo, uma obra de pequenas advertências: sobre o que ainda tem de ser mudado. Sobre os pequenos passos que todos nós podemos dar por uma sociedade pacífica, em que o afecto é o ensinamento primordial a ser transmitido desde tenra idade – “… as culturas menos violentas são aquelas em que as crianças recebem atenção e afecto, crescendo em contacto íntimo com a mãe e a comunidade.”. Trata-se um excelente retrato de Portugal em época de mudanças, com textos resistentes ao tempo e valiosos para amantes de grandes reportagens jornalísticas.
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