Após a publicação de “O Mercador de Veneza” – recontado por Howard Jacobson em “Shylock é o meu nome” -, “Otelo” – recontado por Tracy Chevalier em “O novo aluno” – e “A Fera Amansada” – recontado por Anne Tyler em “Amarga como vinagre“-, a colecção Bertrand Shakespeare, que trata de colocar novos autores diante da herança Shakespeariana, ganha mais um volume: “Semente de Bruxa” (Bertrand, 2018), da canadiana Margaret Atwood, uma fantástica recriação de A Tempestade.
Felix está no auge como director artístico do Festival de Teatro de Makeshiweg, com produções que, quase sempre, geram encantamento e perplexidade. O estado idílico não irá, porém, durar muito mais tempo. Tony, o seu braço direito, foi aos poucos tomando as rédeas de todo o processo, deixando Felix entregue ao acto criativo, até que, já integrado na máquina e no sistema de atribuição de fundos e executando outras manobras mais políticas, decide dispensar o mestre, que viaja até um lugar inóspito certo de que o Festival se irá afundar – e de que meio mundo virá pedir-lhe de joelhos para que regresse.
A verdade é que ninguém parece dar pela sua falta, e Felix remete-se a um exílio que se irá estender durante doze anos. Até que, um dia, decide candidatar-se ao cargo de professor substituto do programa para a literacia da penitenciária do Condado de Fletcher, assumindo a identidade de F. Duke, pseudónimo para um – ou “o” – futuro possível. Aos poucos vai recuperando a sua verve de encenador, cativando todos os prisioneiros que olham para a companhia teatral como o melhor do seu mundo, ansiosos por encenar as peças de Shakespeare repletas de tragédia, vingança e outros sentimentos dados à malfeitoria.
Porém, quando Felix lhes transmite que a próxima peça a representar será A Tempestade, quase todos os narizes se torcem: tem demasiada música, uma fada e nem sinal de pancadaria. Com muito jogo de cintura, Felix lá consegue convencê-los de que esta será a maior produção de sempre, onde se continuarão a usar palavrões oficiais como “cabeça de pântano malsão” ou “cérebro sifilítico” mas, também, com direito a uma banda sonora que inclui Metallica, Leonard Cohen ou até o clássico “Somewhere Over The Rainbow”.
O que o gangue está longe de saber é que Felix, cuja mulher morreu pouco depois de casarem e a filha aos três anos de meningite – filha com quem conversa diariamente -, se atirou à peça visando “uma espécie de reencarnação” e, também, como forma de se vingar de Tony, o “lambe-botas maquiavélico, pérfido e ávido de ascensão social” que lhe deu cabo da carreira.
A escrita de Margaret Atwood reveste-se do espírito setecentista Shakespeariano, juntando-lhe uma trama engenhosa e muitos sobressaltos humorísticos, numa viagem que é, toda ela, surpreendente. No final ficam 5 páginas onde se resume o plot de A Tempestade original, mostrando que Margaret Atwood conseguiu, com muita classe e imaginação, suplantar o mestre Shakespeare. Ou, pelo menos, prestar-lhe uma homenagem de todo o tamanho. Grande livro este.
1 Commentário
O espírito shakespereano não pode ser setecentista. No máximo, seiscentista.
O livro parece muito bom.
Obrigado pela dica.
José Oliver