Em “Seja feita a tua vontade” (Casa das letras, 2017), Paulo Morais compõe um livro revelador de grande maturidade afectiva, com lugar à expressão sem pudor de amor e de desalento, de admiração e de desilusão, entre um neto, jornalista, adulto, já pai e profundamente sensível, e um avô, médico, octogenário, doente e demente, um aparente analfabeto emocional. Uma viagem interior intensa e turbulenta.
No momento em que resolve escolher a forma de morrer, assim pretendendo vencer os vermes que o consomem por dentro, este avô coloca a quem o rodeia diversos dilemas. Mesmo enquadrada por uma evidente demência, parece tratar-se de uma decisão muito lúcida de deixar de viver e não tanto de morrer, num processo de progressivo desligamento da fonte.
A serenidade que acompanha tal decisão favorece a aceitação por parte de quem o rodeia. Uma decisão questionada mas não contrariada, levando a que todos se organizem de modo a dignificarem a despedida, preservando a vida e a história do homem por detrás da situação, num registo de secundarização do momento presente. São então exploradas narrativas retrospectivas e introduzidos verdadeiros desbloqueadores de emoções, levando os intervenientes a expressarem afectos, num exercício de desentorpecimento emocional.
Ao longo de dezanove dias, neto e avô revisitam memórias e exploram dimensões da sua relação, num roteiro de ternura e afectos, sem beijos, sem toque, por vezes até sem palavras. Para o narrador, que se presente co-identitário com o autor, tratou-se de conter a extinção de uma vida, preservando-a num diário de testemunhos de um homem que, por trás da sua máscara de rigidez e embotamento, conseguiu ser pai-avô e, já tardiamente, render-se às brincadeiras improváveis numa mesa de restaurante com a bisneta de tenra idade, deixando cair as raias atrás das quais se abrigava.
A um outro nível, a decisão de controlar a forma como e onde se quer morrer, assumida por um médico como condição de lucidez e preservação da dignidade, confronta-nos com o que será a morte hospitalar e a sua carga eminentemente desumanizadora, sentida por quem conhece o sistema por dentro, como operacional.
Na segunda parte do livro, eis que a vontade deste avô se altera, e eis que o expectável alívio e alegria dão lugar a emoções improváveis, depois de tanta preparação psicológica e de tanto luto antecipado. Uma reviravolta numa altura em que pareciam apaziguados problemas de consciência entre o dever moral de respeitar a vontade de morrer e o desígnio humano de a contrariar. “Preparei-me para a tua morte. Li a tua morte. E agora queres convencer-me de que continuarás vivo? Achas possível morrer-se mais de uma vez durante a mesma vida?”
Paulo Morais oferece-nos uma boa oportunidade de ponderação do direito à auto-determinação na velhice e à premência do tema da eutanásia, nas suas múltiplas formas. Oferece-nos muitas memórias. Muitas dúvidas. Outras tantas incertezas e mensagens mais ou menos subliminares. Uma vida que se esvazia, um balão de emoções que se enche. Um legado que nos permite ponderar as questões do envelhecimento e da demência, numa sociedade que vive a ritmo alucinante, muitas vezes com falta de tempo para as relações. Ainda, a capacidade das diferentes gerações para a promoção de solidariedade e do respeito pelas necessidades e potencialidades associadas a cada idade. Pondera-se uma nova formulação da velhice, do envelhecimento e da morte, realçando a questão – estaremos preparados para encarar o envelhecimento e a morte como processos naturais? Ao fazê-lo, conseguiremos reconhecer a morte como uma etapa da vida, cabendo a cada um a nobre decisão de como e quando a encetar?
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