“Richard Malka não é apenas um brilahnte e combativo advogado da barra de Paris, mas é também arquitecto, criador de mundos, um filósofo apaixonado por sistemas, inventor de cosmogonias vertiginosas, nas quais o humor bem terreno, que lhe foi dado partilhar, compete sem trégua com o pavor dos espaços infinitos.”
Assim começa Claude Lanzmann o prefácio de “Segmentos” (Arte de Autor, 2023), uma série que conta com argumento de Richard Malka e desenho de Juan Giménez, que chegou às livrarias nacionais numa versão integral – reúne os álbuns “Lexipólis”, “Voluptino” e “Neo-Esparta” – em capa dura e com o selo da Arte de Autor.
Em “Segmentos”, o universo é composto pela União Galáctica das Funções Segmentadas, criada para proporcionar um universo desprovido de negatividade. Há, no total, sete planetas, que cobrem a totalidade do campo dos possíveis e das actividades dos homens: ordem, guerra, fruição, troca, espiritualidade, criatividade e trabalho.
No dia conhecido como Armagedão, é feito “o teste que identifica as dominantes psicológicas das crianças de 7 anos que, tendo já adquirido conhecimentos suficientes para responder, não estão ainda muito impregnadas de valores parentais. A atribuição que então se inicia, desejada ou não, é irremediável e torna-se efectiva aos 21 anos de idade”. Nos14 anos seguintes, irão treinar para a vida no seu futuro planeta, muitas vezes um que não corresponde ao dos seus pais ou amigos.
No dia do seu teste de aptidão, Loth Lungren é considerado um bi-funcional perfeito (basicamente estaria bem em qualquer planeta), mas uma atitude de subversão e um humor corrosivo faz com que seja apontado ao sector vermelho, designado por Neo-Esparta. 14 anos depois, no dia da partida, atrasa-se em alguns minutos, o que lhe vale perder o transporte para a sua vida pré-destinada. A insensibilidade da Inteligência Artificial leva a que, em vez de um novo transporte, acabe por ser transferido para Judicia, o Planeta Judiciário, onde se percebe que a revolução não é bem aceite e vale castigos severos. “Os meus prazeres, sou eu que os escolho, senhor Presidente. E isso é válido tanto para o sexo como para a droga”, proclama Jezréel Seth no tribunal, o que lhe vale a condenação a 2 anos de prostituição em Sodoma.
Quanto a Loth, que decide aceitar a dica do advogado de nunca se rebelar contra o sistema, vê-se acusado de ser um rebelde desde tenra idade, desejoso de “regressar aos temos bárbaros da confusão de géneros”, sendo condenado a “50 anos de despromoção genética” – uma técnica de envelhecimento extremo -, para que atinja uma idade em que deixe de ser considerado um perigo para o sistema.
Após uma fuga bem desenhada, Loth e Jezréel unem forças para se juntarem aos sem-cor, tentando “despertar um povo que aceita o segmentismo sem hesitar, muito contente por poder satisfazer as suas pulsões”. Enquanto isso, vai prosseguindo a contagem decrescente para o fim da humanidade, através de uma epidemia que só poderá ser travada com a aniquilação do segmentismo e a descoberta da origem da imortalidade dos guias que alteraram o curso do tempo e da evolução. Pelo caminho, a dupla tentará desvendar uma estranha profecia com ar de enigma: “Da morte nascerá a vida e tanto a morte como a vida encontram-se no planeta perdido”.
Em tempos onde o mundo parece estar a caminhar de forma acelerada para o seu fim – de múltiplas formas -, “Segmentos” é um livro-manifesto sobre a indomável liberdade humana, que arranja sempre forma de se rebelar contra qualquer tentativa de domesticação. Ficção científica de qualidade premium.
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