Isabel Rio Novo, que já nos tinha deliciado com a biografia de Agustina Bessa Luís, vem agora dar à estampa “Rua de Paris em Dia de Chuva” (D. Quixote, 2020), um extraordinário romance sobre a vida de Gustave Caillebotte, pintor francês milionário do Século XIX e grande mecenas de pintores impressionistas seus contemporâneos.
O título da obra é, justamente, o nome de um dos quadros mais famosos deste pintor, do ano de 1877, pintor que representava muitas cenas domésticas, familiares de interiores e figuras na paisagem de Yerres – mas que sobretudo foi autor de extraordinárias pinturas da cidade de Paris na época de Haussmann (arquitecto que recebeu instruções de Napoleão III, em 1853, para reconstruir a cidade com grandes avenidas e redes de esgoto).
A escritora, que assume um fascínio enorme pelo retratado (a isso se irá referir, durante o livro, por amizade), elabora um romance com detalhes magníficos, sustentado na biografia verídica do artista. Há um certo toque fantástico na obra e uma sobreposição inesgotável de locais e períodos temporais que se entrecruzam, fazendo recordar o processo criativo do interseccionismo (iniciado em Portugal em 1914 por Fernando Pessoa), caracterizado pelo cruzamento de planos e percepções. De facto, entre a autora – que assim se auto designa no livro – e o pintor, existe um leque infindável de intersecções e sensações, percepcionadas paralelamente pelo pintor, a autora e Helena, a professora de História de Arte que se torna uma personagem da obra pelas conversas que mantém com a autora.
A escritora refere a sua infância, sempre cotejada com a infância de Gustave Caillebotte, e refere biograficamente também alguns episódios da sua idade adulta (que morreu com a idade que a autora conta agora), em constante paralelismo com episódios da vida do pintor que a autora permanentemente “espreita”, perscruta, visualiza e “acompanha”, física e emocionalmente – mesmo com um século e meio de distância -, percorrendo “com ele” os mesmos espaços, a determinadas horas do dia, num interessante roteiro da cidade de Paris de 1800.
Para além da faceta fantástica da obra, realce para a forma como a autora ilustra a época, a cultura francesa, a pintura (especialmente os quadros deste pintor e as histórias que lhe subjazem), a vida quotidiana e o ambiente parisiense onde se moviam os pintores impressionistas, bem como o modo intransigente em como coloca o leitor nos ambientes de época – seja nas exposições que os impressionistas organizam, nos cafés frequentados pelos “intransigentes” (como o café Guerbois ou o café Nouvelle Athénes), nas próprias relações interpessoais de amizade ou nas expressões de desagrado entre eles.
São três planos que aqui se interseccionam: a detalhada biografia e os sentimentos íntimos de Gustave Caillebotte; a presença autobiográfica da autora (estes dois mundos surgem ligados em modo contínuo na obra); e o mundo fechado de uma mulher deprimida e professora de História de Arte, especialista da obra do pintor, que em encontros com a autora lhe vai libertando a conta-gotas – às vezes de forma exasperante para esta – informações importantes sobre a vida e o perfil psicológico de Gustave Caillebotte.
A escritora põe na boca de Helena uma frase que se mostra relevante na estrutura quase fantástica do livro – “Caillebotte e as suas pinturas chegaram até nós como um enigma. Mesmo adoptando uma visão realista, as suas telas apresentam uma atmosfera inquietante, como se nos dissessem que o quotidiano mais banal pode conter em si estranheza suficiente para abalar as nossas certezas” -, sendo também lúcida e tocante a forma como acaba por ilustrar um amor resgatado à linha do tempo: “(…) é por isso que vale a pena escrever livros, para poder conversar à distância com aqueles que amamos e que não são do nosso tempo. Que triste e pobre seria a vida se as nossas afeições estivessem limitadas àqueles com quem nos cruzamos realmente. Que longos nos pesariam os dias se aqueles que morreram antes de nós estivessem mesmo ausentes”.
1 Commentário
Acabei de ler o livro hoje.
Adorei. Não conhecia a autora mas vou conhecer melhor.
E fui procurar na net todos os quadros do pintor. São lindos!