A Noite da Literatura Europeia (NLE) regressou a Lisboa no dia 8 de Junho, em formato alargado e com nova localização: a Colina de Santana, um espaço multicultural pejado de património arquitectónico a descobrir. No entanto, a azáfama de outros anos não se sentiu ao subir à colina pela Rua de São Lázaro, e esta é a primeira critica que se levanta à organização: às 17h45, quem saiu do Metro no Martim Moniz e subiu em direcção às Carpintarias não encontrou bandeirolas, sinalética ou voluntários que prestassem informações. Às portas – fechadas – das Carpintarias de São Lázaro a situação era a mesma: um punhado de gente aguardava mas sem grandes certezas. Numa visita rápida para um snack num café de uma esquina próxima, não descobrimos quaisquer informações sobre o evento. Estranha novidade!
A arte de ser repetente prende-se com o facto de este ser o quarto ano em que andámos em trânsito pelas ruas e colinas de Lisboa, em busca das palavras alheias que nos chegam dos vários cantos da Europa e que nos permitem marcar encontro com amigos das lides literárias e pisar o chão do nosso património que, com esta facilidade, não pisaríamos não fossem eventos como este. E nisso, é preciso que se ressalve, a NLE é um evento de excelência para desfrutar da nossa cidade.
A abertura desta NLE começou no novo centro cultural da cidade de Lisboa, as Carpintarias de São Lázaro, renovadas de forma minimalista e prontas para acolherem eventos que misturem diferentes abordagens culturais. A sessão foi entregue à Casa Fernando Pessoa, que preparou uma sessão de poesia, escrita e dita por bocas bem contemporâneas: Margarida Vale de Gato, Gologna Anghel, Marta Chaves ou Miguel Cardoso, citando apenas alguns daqueles que, com a sua voz, leram poemas que ocuparam o espaço. “Quando os poemas saem das bocas de quem os lê ocupam espaço na sala (…) atingem paredes, janelas, tectos (…) e que o pé direito alto não seja fronteira“. E não foi. O entrave foi a pouca organização das pessoas no espaço.
A arte de ser repetente também nos ensina que, ao sair do espaço onde decorreu a abertura, é melhor começarmos a nossa caminhada para o local mais afastado, usufruindo de uma 1ª sessão mais calma e com menos afluência. Foi com essa meta que, rua acima, subimos até ao Paço da Rainha. Fica mais uma ressalva: o percurso não tinha sinalização, e o único voluntário encontrado junto aos semáforos do Jardim Mártires da Pátria não estava a saber dar indicações, tanto para a Galeria Monumental como para o Polo de Investigação da Faculdade de Ciências Médicas. E o mapa, para quem desconheça totalmente a zona, não era suficiente. Por isso, munidos de um bom conhecimento da nossa cidade, lá demos indicações e seguimos a nossa via literária até às leituras da Irlanda e do Reino Unido.
No Paço da Rainha, espaço nobre e pomposo que acolhe actualmente a Academia Militar, pudemos visitar a Sala D. João IV e a Biblioteca da Academia Militar. Se as luzes se acenderam e deram um clima austero à leitura de “Mrs. Osmond”, de John Banville, por Inês Lapa (de quem já vimos interpretações muito boas noutros anos), as luzes quase que se apagaram para transmitir o clima soturno e gótico à leitura de Hugo Bettencourt, que escolheu muito bem o capítulo a ler de “Elmet, Vidas Desencantadas”, de Fiona Mozley (que lhe valeu em 2017 integrar a shorlist doo Man Booker Prize 2017), e nos transportou para a narrativa.
Estavam vistos dois dos países/autores pelos quais tínhamos curiosidade. Até porque, mesmo querendo ver todos, não se consegue: existem dez momentos de leitura para catorze autores em destaque. Por isso a escolha seguinte recaiu em Maylis de Kerengal (França). Não por conhecermos a sua mais recente obra – “Um mundo mesmo à mão”, a editar em breve pela Teodolito (tradução de Inês Pedrosa) -, mas pela anterior, “Cuidar dos vivos”, cujo argumento adaptado ao filme homónimo apreciámos bastante.
A sessão da França, na Galeria Monumental, contou com leituras em francês pela própria autora (foto) e por Cátia Tomé que, escondida no cenário translúcido, teve a sua interpretação acompanhada por registo musical e fotos/gravuras, que pretendiam enquadrar a obra: um “livro sobre a paixão pela Arte, um convite a um olhar diferente sobre todas as formas de pintura“.
À saída da Galeria, um cartaz convidava-nos para a exposição de Benjamin Rabier patente no Museu Bordalo Pinheiro, com ilustrações do “Romance da Raposa», de Aquilino Ribeiro. Numa pesquisa rápida, enquanto cruzamos a passadeira para nos dirigimos à Faculdade de Ciências Médicas, vemos que ainda vamos a tempo de visitar as ilustrações de Rabier, mas que à data já perdemos o Festival de Leitura do Bairro de Alvalade. Há sempre tanto a acontecer que não damos (nem conseguimos) dar conta de tudo.
A pequena caminhada até ao imponente edifício da Faculdade de Ciências Médicas permitiu-nos ver o renovado jardim e uma esplanada para umas boas leituras em fins de tarde mais amenos, já que o vento bem frio se fazia sentir – e que talvez tenha afastado alguns espectadores do pátio onde Patrícia André (outra repetente) lia sobre os “absurdos do dia a dia” em prol de arranjar uns trocos, episódios criados por Judith Nika Ofeifer, apelidados de “despretensiosos e inteligentes” pela Literaturhaus Wien. O cenário talvez tenha sido um dos que mais potenciou a dinâmica entre o leitor/actor e o público.
No mesmo edifício decorreram as sessões de leitura da Itália onde, num breve salto à Sala dos Passos Perdidos, ouvimos na voz de Elmano Sancho as prodigiosas aventuras de Isidoro Sifflotin, de Enrico Ianniello, que foram (bem) ajudadas pelo lado dramático da azulejaria típica portuguesa.
Descendo a escadaria – e podemos dizer que este evento foi uma autêntica aula de sobe e desce – tínhamos leituras de “Inventário”, alguns poemas em leituras partilhadas entre o autor Kamil Bouska e Tiago Patrício.
Era incontornável sair deste edifício e não ir logo em direcção à Biblioteca do Polo de Investigação, ver o que nos reservava a dupla Ana Jordão e Vanessa Marques de Oliveira, que faria a performance para o livro “A mulher que correu atrás do vento”, de João Tordo, obra escolhida para representar Portugal. Independentemente da qualidade da interpretação, Portugal teve um dos melhores cenários, criado com cuidado e detalhe para os vários anos e personagens que a obra aborda. No entanto, para quem não leu o mais recente livro de João Tordo, talvez tenha ficado meio perdido – o que pode ter sido um bom empurrão para a futura leitura. A leitura gravada de certas partes desta sessão funcionou menos bem, sobretudo a voz que narrava as confissões de Lisbeth.
Estando neste edifício impunha-se a visita à antiga cisterna do Instituto Bacteriológico, “cujas paredes e chão de pedra mantiveram a traça original“, para apreciar o espaço e por se gostar do humor ácido do intérprete. Descemos ao espaço mais silencioso de todo o evento para encontrar um menos cáustico e humorístico Rui Zink, que nos leu e deu a oportunidade de interagir com o autor romeno Radu Paraschivescu, conversando sobre a obra e a escolha do amor de Pedro & Inês para este seu último livro, que vem para contornar algum aborrecimento do autor em escrever só sobre a Roménia. Desta sessão ficou também a frase: “O silêncio nunca matou ninguém!“, que me moeu a pensar na veracidade da afirmação e no quanto isso dava um livro.
A noite já ia longa pedindo outro snack e, conhecendo o espaço da Xuventude de Galicia/Centro Galego de Lisboa, esse seria o local ideal. No entanto, o encontro com Ulisses Ceia (outro excelente repetente) deu para dois dedos de conversa (e contornar o snack) sobre o livro de Daniel Kehlmann, “Devias ter-te ido embora”, que li e não fiquei fã, precisando de debater um pouco sobre isso mesmo. No entanto, o actor ficou fã do livro e a interpretação captou muito bem a narrativa dispersa, labiríntica e vaga do último livro do autor alemão. Um detalhe muito bem escolhido foi a música estridente, que transmitia a ansiedade e a loucura do personagem. Isso e o cenário entre portas e janelas, que não sabemos onde vão, tal como no livro.
Na iluminada sala Leocadia Boullosa realizava-se a animada sessão da Espanha, que trouxe poemas da antologia de Leopoldo María Panero (Antígona, 2018) pelo grupo laboratorial de linguagens BlablaLab. As diversas interpretações foram registadas pelo grupo e estão disponíveis no seu perfil (aqui).
Já na recta final, acusando um certo cansaço, frio e fome, os repetentes dirigiram-se às suas últimas escolhas – as nossas recaíram na principal favorita da noite, a Polónia e a escola (e biblioteca) centenária(s). Descemos a escadaria paralela ao Jardim e voltámos ao início, para nos aconchegarmos na pequena e acolhedora sala de leitura da Escola Básica Nº1 de Lisboa, que data de 1879, ouvindo uma interpretação entusiasta e de olhar brilhante de Alexandra Teles, que fez a espera de aeroporto ser mais curta e prazerosa e nos puxou para o universo de «Viagens» de Olga Tokarczuk, deixando o espectador a pensar no sentido do que é ser-se um viajante.
Caminhando até à boleia que já nos espera levamos imagens de uma Croácia descrita com inocência e uma frase de Tokarczuk: “Quando viajo desapareço no mapa“. Assim desaparecemos, também nós, das ruas desertas, de uma zona multicultural mas nocturnamente despovoada desta nossa Lisboa.
Fotografias: EUNIC Portugal / Puro Conceito
2 Commentários
Olá Cris ! obrigada pela sua visita e pelos seus pertinentes comentários! Vamos tomá-los em linha de conta para a próxima edição ! Com a maior simpatia ! Maria
Em nome da Cris, obrigado!