Dez anos depois da edição original (2009), ”Regresso a Reims” (Dom Quixote, 2019) é agora publicado em Portugal pela Dom Quixote. Que em boa hora o fez, pois trata-se de um ensaio sociológico e político absolutamente notável de Didier Eribon, investigador, sociólogo, filósofo, escritor e professor universitário francês, nascido em 1953.
Didier Eribon escreveu outras obras intensamente autobiográficas como esta, desarmando sempre o leitor com a sua agitadora sinceridade e lucidez que expressa, (veja-se “Réflexions sur la question gay”, de 1999), mesmo quando se assume, afinal, como contraditório. Explora as contradições da classe operária mas sem nunca esquecer que também a esta classe pertence. Mergulhamos, com ele, na “dominação social” das elites e proprietários sobre as classes populares, e na que é exercida pelo patriarcado sobre as minorias sexuais e as mulheres.
De alguma forma, o presente estudo sociológico, eivado de dados pessoais autobiográficos de extrema lucidez e sem subtilezas ou tibiezas, é um duelo que se trava dentro de alguém que pertence à classe operária e, de certa forma, sociologicamente condenado ao fracasso, que triunfa em Paris. Regressa, na escrita deste livro, ao seu local de origem (do qual se envergonhava), para fazer uma nova leitura sobre o funcionamento da ordem social em que cresceu e reflectir sobre as razões que o levaram a converter-se em sociólogo e militante politico. Impressiona muito a sabedoria que se encontra na parte em que o autor/sociólogo fala sobre “a aparente democratização da escola” para os filhos das classes operárias, e a forma como, depois, numa espécie de autofagia, os exclui propositadamente do próprio sistema de ensino.
O regresso a Reims não é feito para recuperar as memórias que se estendem às razões ponderosas da sua (não) relação com o pai, já falecido, entre elas a sua “desidentificação que por sua vez se alimentava sem cessar da identidade recusada” (sobretudo pela não aceitação da homossexualidade do autor), mas para compreender as razões da profunda exclusão que sentiu – e que moldaram indelevelmente a sua personalidade. Aliás, a forma como escreve é tão impressiva e perturbadora que cada leitor se reconhecerá um pouco na sua história de vida e opiniões.
Trava-se aqui um permanente duelo entre a origem de classe e o percurso pessoal, que traduz as mais profundas angústias humanas sobre identidade e aceitação, domínio e exclusão, tratadas sem subterfúgios com as ferramentas da crítica social. É absolutamente surpreendente a lucidez política sentida a cada página, quando se debruça sobre as razões subjacentes às mudanças de padrão de voto da classe operária, que altera o seu voto (natural ) no Partido Comunista para o direccionar para a Frente Nacional de Le Pen, muito devido a arreigados sentimentos racistas nascidos anos 60/70 do século XX contra os imigrantes, à época oriundos do Norte de África.
Eribon expõe os seus próprios referentes de vida apoiados na obra teórica de Foucault, de James Baldwin, de Frantz Fanon, de Bordieu ou de Barthes, entre outros. O exercício sociológico torna-se subtil, ao duvidarmos a certo ponto se se trata de um livro militante ou de um auto-retrato sem sentimentalismos.
Didier Eribon contribui convictamente para a nossa compreensão dos mecanismos sociais da exclusão dos homossexuais e dos imigrantes, também porque o livro é escrito na primeira pessoa. “Regresso a Reims” é um ensaio sociológico de grande envergadura, uma reflexão política muito aprofundada, actual e uma autobiografia difícil de esquecer.
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