Se, em Portugal, nos falta na música uma pop star como Timberlake ou Beyoncé, no campo das letras o cenário é bem diferente. Ricardo Araújo Pereira, que só para facilitar se tornou também no RAP, é sem dúvida alguma a nossa estrela maior do humor quando transformado em literatura ou performance, como ao longo dos anos temos vindo a comprovar no já extinto Gato Fedorento, actualmente como ministro do Governo Sombra ou através das sempre pertinentes crónicas para a revista Visão.
Na Tinta da China, editora na qual coordena a colecção de Literatura de Humor, publicou já quatro volumes de crónicas da Boca do Inferno (2007-2013) e duas colectâneas de Mixórdia de Temáticas (2012 e 2014), para além do brilhante ensaio “A Doença, o Sofrimento e a Morte entram num Bar: Uma espécie de manual de escrita humorística” (2016). Agora, o mais recente capítulo dá pelo nome de “Reaccionário Com Dois Cês” (Tinta da China, 2017), sem espaço para concessões, acordos ou beijos na Língua.
Nestas rabugices sobre os novos puritanos e outros agelastas, vemos o jornalismo a apanhar com o cacete, Salazar ser eleito como o rei dos enchidos de Santa Comba Dão, ouvimos contar a fábula dos submarinos alemães, escapamos por um triz aos incêndios das redes sociais – e ao imbecil e perigoso Carrilho -, tudo com direito a um belo brunch e a um nunca-se-sabe-quando-vai-dar-jeito visto gold.
Só pela Carta de Amor a Portugal, texto inicial deste “Reaccionário Com Dois Cês”, valeria a pena levar o livro para casa, um retrato com muito amor e humor deste país onde por vezes se olha para a novidade de boca aberta. Outra vez brilhante ou, como dizem e bem os brits, RAP did it again.
“Temos de falar. Como sabes, o meu amor por ti tem resistido a tudo. Tu és pobre, sujo em vários sítios e estúpido muitas vezes. Mas há em ti uma certa ingenuidade que faz com que até os teus defeitos – e são tantos – me seduzam. Na maior parte das vezes não és mau, és só malandro. E tens três qualidades que compensam tudo o resto: a comida, a língua e o clima. Era precisamente sobre isto que te queria falar. Andas a desleixar-te. A comida já foi melhor. Bem sei que a culpa não é só tua. A União Europeia proíbe umas coisas, os nutricionistas desaconselham outras. Mas já não se encontram jaquinzinhos, os restaurantes receiam fazer cabidela e a medicina parece ter arranjado um método infalível para determinar o que é prejudicial à saúde: se sabe bem, faz mal. A língua também já não é o que era. Não me entendas mal: continua a ser a tua maior virtude. Não sei como é possível uma pessoa exprimir-se numa dessas línguas bárbaras que não distinguem o ser do estar. Embora os franceses e os ingleses, aparentemente, não o saibam, ser bêbado é muito diferente de estar bêbado.(…) Outra coisa: isto do clima não pode continuar. Este verão foi muito fraco. Houve pouco sol e a água estava fria. Não se admite. A gente tolera a corrupção, a injustiça, a inveja, o subdesenvolvimento e todo o mais que tu conseguires gerar. Mas tem de estar sol. Se é para não haver verão, nem subtilezas linguísticas, mais vale irmos para a Finlândia, onde as coisas funcionam. E a moral sexual das moças nórdicas é muito mais relaxada.“
Sem Comentários