“É por isso, creio, que damos vários nomes aos recém-nascidos, é a difusa fantasia de uma vida que não será única, que não será singular, é o confuso desejo de dar diversas vidas, ou então apenas uma, mas imortal, sim, imortal, de conceder vários rostos, de abrir o campo dos possíveis quase até ao infinito.”
Talvez “Quem Sabe” (Alfaguara, 2023) de Pauline Delabroy-Allard, seja um exame de consciência ou o retrato de uma obsessão. O leitor que decida: se essa obsessão é um nome ou o acto da escrita.
A protagonista é uma mulher que encerra, em si mesma, um desconhecimento profundo -embora questionante – sobre quem são as pessoas que a constituem – e sim, constituem. Ninguém é o resultado de um vazio, antes um composto de histórias que antecedem o seu nascimento, e Pauline Jeanne Jérôme Ysé, esta mulher de trinta anos que cresceu em branco e sem documento de identidade, vê-se chegar a esta fase da vida sem conhecer os motivos para ter uma litania de nomes próprios.
“Um documento que não me servirá para fugir, mas sim para me enraizar, para me implantar mais firmemente neste território que é o meu, nesta nova história que estou a escrever. E os três fantasmas saltam-me ao pescoço, à saída do registo civil, onde fui levantar o retângulo de plástico oficial. Tenho de os conhecer.”
Conhecê-los é, assim, descobrir-se. Ou redescobrir-se, para se escrever – e para escrever, o que é para ela uma forma de vida. Ela própria, Pauline – ou uma Pauline reinventada -, emparelhou três outros nomes próprios, que assim justificariam as dúvidas que sempre a acompanharam. Perguntas incómodas e silenciadas. Dúvidas apelidadas de intransigentes por uma mãe facilmente irritável.
“Nada de perguntas, portanto. Nada de fazer ondas. Escrevo porque o olhar da minha mãe se esfuma, porque o seu silêncio me oprime. Escrevo para preencher vazios. Escrevo para ver mais longe. Escrevo para remexer com a ponta do dedo nas feridas da existência. Escrevo para desagradar. Escrevo para deixar de ter medo. Escrevo para salvar o que pode ser salvo. Escrevo para saber quem sou. Se não conseguir obter respostas, inventá-las-ei.”
Com uma fronteira ténue, esta auto-ficção sem uma ideia de fim e com uma premissa ambiciosa, traz ao leitor uma autobiografia fragmentada, que se descobre à velocidade do que é escrito, sem contenção, como acontece com as obsessões, como se tudo se desenrolasse mesmo em frente do leitor.
“Como fazer quando não aprendemos a colocar perguntas? Ou justamente, quando aprendemos a evitá-las? (…) Escrevo para não ter de fazer outra coisa. Escrevo para dar uma certa compostura à existência. Escrevo para me convencer que tudo correrá bem…”
Pauline precisa que tudo corra bem para superar o luto pela sua identidade, já que a “surpresa nunca suplanta a dor”, mesmo que essa dor tinha sido previamente adivinhada pela escrita, pela purga de uma pena desenfreada que, por mais anos que escreva, continua a interrogar-se – “As palavras de Kant ressoam-me na cabeça, que posso saber, que devo fazer, que me é permitido esperar” -, distinguindo alguns contornos, delineando melhor cada fantasma e, como um bom soldadinho, seguindo às ordens desses fantasmas, num presente que parece infinito porque acredita e sente que está só.
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