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“Quarentena” | José Gardeazabal

Por Cris Rodrigues · Em 27/05/2021

Uma porta é fechada. Um cartaz é afixado:

QUA-REN-TE-NA
Um casal. 0 filhos.

Confinamento obrigatório, mas cada um deles está de malas feitas, pronto a sair. A separação é uma realidade, mas a pandemia uma realidade maior. Que geografia têm os afectos em quarentena? E qual é o tamanho do labirinto emocional quando a palavra de ordem é: SE-PA-RA-ÇÃO?

“Caímos antes da queda, e agora? (…)
O algarismo é um insulto, naturalmente. 0 filhos soa a mais absoluto que zero filhos. e nós já não somos um casal, quanto mais Um Casal.”

Explorando os afectos no seu jeito muito próprio de escrever, José Gardeazabal explora esta nova realidade, confusa e difusa, por entre notícias que se contradizem, dados e factos que entram em conflito e um rol de suposições que pairam sobre o discernimento, já tão difícil de manter. E, como que num jogo, um casal – ou o que resta dele – procura sinónimos para as palavras: Quarentena e Amor.

Sob o olhar provocador dos dias que passam e se acumulam, e com um piscar de olhos à relativa insanidade que ameaça romper, o jogo alastra-se para muitas palavras que se impõem e urgem por definição: casa; isolamento; separação; armadilha; sintomas; distanciamento; contaminação; instrospecção; contagem…

“Dia 3: Casa para viver é chão para morrer
(…) – Quero construir um muro aqui. (…)
A nossa casa deforma-se entre ruínas, Já fomos tão parecidos que podíamos ser invisíveis (…) Fomos duas metades do melhor de dois mundos.”

A casa deforma-se, “(…) sabe a comida estragada no frigorífico“. A realidade reinventa-se e a soma dos dias carece de rotinas. Inventariar as horas e registar a contemplação podem ser actividades tão úteis como estender a roupa ou olhar ao outro como quem vê televisão. Mariana e o narrador sabem que “a matemática sobrevive à quarentena melhor que a intimidade“.

“O vírus está em toda a parte e não se vê, subiu ao patamar exigente de uma religião. Em vez de uma missa, ouvimos políticos a contar os mortos e os recuperados, diariamente.”

Nas entrelinhas desta história de amor em 40 dias surgem, quase como uma avalanche, deambulações que cruzam cinema, pintura, referências cinematográficas, literatura e fotografia, trazendo assim uma multidão para uma viagem entre quatro paredes.

“Às vezes precisamos de amar para ser nós mesmos. O que somos quando amamos, e o que somos quando somos sem amor? O escritor Robert Walser falou do «soçobrar do palácio do prazer». A imagem de um desmoronamento, sensual como roupa a desaparecer, a roçar o corpo enquanto cai, perto da pele. A «soçobrar.”

Quarentena, José Gardeazabal, Deus Me Livro, Companhia das Letras, CríticaFoi a casa que matou os afectos? Foi a rotina e o desprezar da companhia um do outro? Ou a falta de sexo e o imaginário por preencher? A fantasia que soçobrou, ainda antes de ser construída? Em “Quarentena” (Companhia das Letras, 2021), Gardeazabal propõe vários pontos de fuga, teorias como rectas que, tal como o casal, já não se tocam, substituindo “a sexualidade de proximidade pela distância de segurança“, sem saber o que fazer a um presente estagnado e, ainda assim, entregue a um redemoinho do passado afectivo que os une.

Nestes Cadernos do Acontecido, série à qual pertence este novo romance, o autor não esqueceu – e não podia – todo este novo normal, também na forma como a sociedade olha à política e ao regime forçado do dever do recolhimento, e fá-lo sempre com o humor negro de quem deita sal na ferida.

“(…) ninguém está autorizado a sair. Se alguém cometer um assassinato será obrigado a voltar ao local do crime: se alguém já foi feliz, regressará algemado ao sítio da antiga felicidade. (…)
O poder é o elefante na sala e está sempre na sala.
O governo pede-nos para nos portarmos bem, diz que somos muito elogiados lá fora. No confinamento, lá fora é a melhor metáfora, quem é que não quer ser elogiado lá fora?“

Companhia das LetrasCríticaDeus Me LivroJosé GardeazabalQuarentena

Cris Rodrigues

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