De acordo com o dicionário inFormal, puta de vida é uma expressão usada para dizer que alguém está com muita raiva, com muito ódio, muita nervosa por algum motivo. No livro de João Paulo Nogueira, o nome é o mesmo: “Puta de Vida” (Abysmo, 2021). Aquela que permite que a intimidade esconda comportamentos de abuso, de poder e de violência que prejudicam, despertam medo, impedem alguém de fazer o que deseja ou a/o forçam a comportar-se de uma forma que não deseja. Há quem considere que na intimidade é normal, ou pelo menos aceitável, agarrar, dar murros, empurrar, dar pontapés, morder, apertar o pescoço, deitar ao chão, puxar os cabelos, atacar com arma ou com outros objectos, forçar práticas sexuais ou forçar práticas não desejadas, ameaçar bater, ameaçar violar, ameaçar matar, ameaçar suicídio, obrigar ou proibir de fazer algo, insultar e humilhar, enunciação que não consegue abarcar todo o tipo de comportamentos (in)imagináveis, relatados em contextos forenses ou tão só sociais. Ainda assim, ainda há quem consiga quebrar e rejeitar as crenças, os estereótipos de género e o ciúme, que legitimam e promovem a presença da violência física e sexual, da ameaça e da intimidação, do abuso emocional e da privação económica, em relações de intimidade, de dependência e de isolamento.
Ainda assim, “Puta de Vida” não é, nas palavras do autor, um livro sobre violência doméstica, mas passa por lá. É, sim, um livro que submerge nos contextos e nas subtilezas da intimidade, no valor da resiliência das personagens – desde logo do próprio narrador, também ele activo na forma como descreve o processo criativo do escritor. Escritor e personagens que surgem, assim, em igualdade, providos de pensamento, emoção e comportamento, evoluindo ao sabor da descoberta que se adivinha partilhada, da construção da história de Purpurina (ou Matilde) e da comunidade de amigos que a rodeiam.
Com formação em Ciências da Comunicação, experiência teatral desde 1983 – como actor, encenador e dramaturgo, com actividade de animador e docente na área da expressão dramática e animação cultural – e jornalista no campo da cultura e do teatro, Joaquim Paulo Nogueira encontra uma forma muito interessante de abordar o tema duro e complexo da violência na intimidade, ajudando a que a comunidade mude.
A partir da observação de uma mulher numa esplanada – chamemos-lhe Purpurina -, Roberto, um escritor meio encalhado, lida com a compulsão para escrever e a dificuldade em fazê-lo. Imagina uma personagem a partir da realidade, confere-lhe identidade e teatraliza a sua evolução. O resultado é um livro que intercala a dramatização com passagens reflexivas sobre o tema da violência, com ganhos para ambas as dimensões.
Purpurina, Clara e Maria Luísa são mulheres que se cruzam na vida de Roberto, escritor em disputa entre o imaginário e a realidade. Para ele, a violência era algo distante, arcaico e improvável, mas quanto mais pesquisou, na realidade virtual e entre os que lhe eram próximos, mais evidências encontrou, onde menos esperava, envolvendo quem menos suspeitava, atingindo quem menos previra.
Purpurina passou de uma personagem ficcional para a realidade de Roberto, na qual, afinal, a violência já existia, em pleno século XXI, numa sociedade que se tem como civilizada, envolvendo também gente cosmopolita, independente e informada.
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