Nestes tempos onde se tem transformado o poder do leite num verdadeiro mito urbano, Neil Gaiman abre descontraidamente um pacote e serve-nos, em vistosas taças de cereais, uma história apontada ao universo infanto-juvenil, que faz do leite o autêntico néctar dos deuses.
“Só havia sumo de laranja no frigorífico. Não havia mais nada para juntar aos cereais, a não ser que aches que ketchup, maionese ou a água dos pickles ficam bem com rodelitas.” Com a mãe ausente para fazer ao mundo uma apresentação sobre lagartos, caberá ao pai da casa cuidar dos seus dois catraios. Porém, quando regressa da rua de uma missão de ordem lacticínia, diz aos pequenos que viu um enorme disco prateado a pairar sobre a Rua Marshall – a deles -, para o qual foi sugado por um feixe de luz. “Por sorte, tinha enfiado o leite no bolso do casaco”, diz aos filhos, acrescentando que a pérfida missão a que os alienígenas se entregam é a de redecorar por inteiro o nosso planeta.
É este o ponto de partida para “Por Sorte, o Leite” (Editorial Presença, 2016), que nos leva numa aventura incrível onde, para além destes seres um bocado verdes – “muito semelhantes a bolhas” – e de ar resmungão, somos apresentados a uma furiosa rainha dos piratas, a Slop – “o deus das pessoas com nomes curtos e engraçados” -, a vampiros que trocam quase todas as letras por V`s ou ao Professor Estego, que nomeou todas as coisas do mundo há muito tempo atrás – nos tempos em que um coco era designado como um “crocante-duro-peludo-branco-molhado”.
Ao longo deste frenético relato parental, as crianças vão tratando de apontar as falhas da história, como o facto de às tantas termos piranhas a nadar em água salgada ou dinossauros a subirem por escadas de corda – além de se sugerir que alguns póneis ficariam bem algures na narrativa. “Por Sorte, o Leite” é o mantra que alimenta a narrativa, servindo de transição entre personagens e situações – e, claro, para o curioso desenlace.
As ilustrações de Skottie Young, a preto e branco e de traço fino, são um verdadeiro deleite, incríveis na forma como desenha torres com telhados que parecem chapéus, estranhos animais ou cenários tão diversos quanto uma montanha vista do alto de um balão quente ou uma cozinha um pouco desarrumada. História para ler em voz alta, “Por Sorte, o Leite” traz-nos o lado mais infantil de Gaiman, mostrando que, quando a mãe está fora, o melhor mesmo é deixar que a imaginação aponte o caminho.
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