As leis da democracia são como as salsichas: gostamos do seu sabor mas será melhor não sabermos de que são feitas, terá dito Otto von Bismarck. À luz do contexto político das últimas décadas, os cidadãos das democracias ocidentais, fiéis aos conselhos do famoso estadista da Prússia, pareceram de facto não se importar com o que acontecia na sua própria fábrica de enchidos (ou seja, nos gabinetes de poder), desde que pudessem continuar a degustar os saborosos dividendos económicos que a estabilidade política lhes proporcionou. No velho continente, chegou-se mesmo a profetizar o eterno triunfo do centrismo e os ingredientes da salsicha, fossem eles recomendáveis ou não para a saúde, lá se mantiveram inalterados.
Nas últimas décadas, as crises financeiras trouxeram o descontentamento popular e geraram ondas populistas, que vieram alterar os condimentos do arco governativo e, no fundo, abalar todo o negócio democratico-salsicheiro por essa Europa fora. Observe-se a aproximação do poder por parte de Marine Le Pen em França, a autocracia que Orbán instituiu na Hungria, o extremismo que Meloni ameaça trazer de volta a Itália e a demagogia vitoriosa de Boris Johnson e Liz Truss, que, num tão curto espaço de tempo, conseguiram a proeza de erodir a credibilidade do Reino Unido enquanto potência política. Porém, não foram as recentes vagas de direita radical e nacionalista que corromperam a pureza das salsichas da democracia liberal, uma vez que as receitas das mesmas sempre tiveram uns condimentos algo, digamos… picantes.
“Populismo: Lá Fora e Cá Dentro” (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022) descreve o populismo como “um murro no estômago do status quo”, não fosse o propósito da reforma democrática a força motriz deste fenómeno político. Comummente, a experiência populista de qualquer regime é personificada por um intruso que surge nos bastidores do Estado, muitas vezes sem gravata e, tantas outras vezes “sem maneiras e desbocado”. Um verdadeiro populista reclamará o valioso estatuto de outsider, cuja missão é resgatar o monopólio político das mãos das velhas elites e colocá-lo nas mãos do povo. O conceito de soberania popular é, aliás, o sustento de qualquer movimento populista, que será plebiscitário por defeito e “anti-institucionalista por natureza, desconfiando da função de intermediação de instituições como partidos políticos, media e tribunais”. No fundo, o principal objectivo de um populista será a “sedução da populaça” e, de modo a atingir os seus fins, tentará a todo o custo incidir sobre si os holofotes mediáticos, trazendo para o espaço público um conjunto de áreas e assuntos polémicos e polarizadores.
O livro identifica, assim, os principais traços, tiques e truques dos movimentos populistas e descreve igualmente as suas origens, tamanhos e feitios. Lá fora, na nossa Europa, há os populismos de esquerda (como o Syriza na Grécia, o Podemos em Espanha e a França Insubmissa de Mélenchon) e os de direita (como a Frente Nacional de Le Pen e tantos outros). Na Ásia temos Modi, na América do Sul há populismos neoliberais mas também revolucionários, há um duelo de titãs populistas em curso no Brasil e, nos EUA, o fantasma de Trump ainda assusta muita gente.
Cá dentro, o caixão da teoria do excepcionalismo luso arrecadou mais um prego, visto que, ao contrário do que se possa pensar, Portugal não é (nem nunca foi) “um oásis no meio dos populismos estrangeiros”. Aliás, não foi André Ventura quem inventou a atitude “anti-sistema”, muito menos foi ele quem trouxe o preconceito e a xenofobia para o Parlamento português. Curiosamente, também não foi o Chega quem concebeu o conceito de “portugueses de bem”. E esta, heim?
Segundo José Pedro Zúquete, já Sidónio Pais pregava à “gente de bem” as suas ideias para uma república presidencial populista e, mais tarde, também Spínola buscaria “banhos de multidão” junto dos “verdadeiros portugueses”. No período pós-revolução, Sá Carneiro instituía um PPD-PSD de bases anti-elites (um tema evidentemente populista) enquanto que, do outro lado da barricada, emergia o anarco-populismo de Otelo Saraiva de Carvalho. Décadas depois, a refundação popular e nacionalista do CDS-PP traria à praça pública a ideia de “produtivismo (os trabalhadores vs. os parasitas)” e Francisco Louçã inauguraria, no BE, uma forma diferente de fazer política à esquerda, através da sua “retórica antipartidária e antipolíticos”. A nível local, nem só de festas e romarias subsiste o populismo português — baseando-se na tese da guerrilha da vontade popular que enfrenta um governo central burocrático e elitista, Alberto João Jardim atingiu os píncaros da “violência verbal”, ao mesmo tempo que Isaltino Morais, Fátima Felgueiras e Valentim Loureiro lucravam com a suas abordagens políticas mais “terra-a-terra”.
Todos os episódios deste indiscreto “desfile de populismos” deixaram um rasto de “comportamentos, práticas e linguagem”, que estão à disposição de Ventura, dos seus parceiros europeus e de outros que certamente lhes seguirão as pisadas. Catastrofismos à parte, numa altura em que se reerguem as sombras da recessão económica, a presente conjuntura parece ser propícia ao florescimento dos ideais (e interesses) populistas. Caberá às instituições democráticas encontrar um método eficaz para desmascarar a doutrina populista — caso ainda não tenham começado a pensar nisso, têm neste livro um excelente ponto de partida.
Sem Comentários