“O regime controla a economia, os tribunais e as forças da ordem. Utiliza a comunicação social, o cinema, o teatro, a arte e o desporto como meios de propaganda e doutrinação dos cidadãos. Baniu a religião e encerrou as igrejas. Não existem eleições livres, não é permitida a liberdade de expressão ou qualquer iniciativa individual, nem a circulação de livros e jornais que não tenham sido aprovados por uma comissão de censura. Os cidadãos recebem senhas para adquirir alimentos nas lojas e necessitam de um visto para sair do país. Os opositores são perseguidos e enviados para campos de reeducação pelo trabalho onde são transformados em escravos.”
Assim descreve João Cerqueira o regime da Eslávia, um país fictício do leste europeu, dominado pela União Soviética desde o fim da Segunda Guerra Mundial até às reformas lançadas por Gorbatchov no final dos anos 80. É nele que decorre a acção de “Perestroika” (Ideia-Fixa, 2022), que retrata com o mesmo brilhantismo arrepiante o sistema comunista repressivo do Bloco de Leste e a forma como o ideal democrático pode ser desvirtuado.
A primeira parte do livro decorre num mundo pré-Perestroika, cujos meandros nos vão sendo revelados por um leque muito diversificado de personagens. Do lado dos dirigentes, conhecemos o repulsivo presidente, o chefe da polícia secreta e alguns comissários do povo, sendo dois deles relativamente bem-intencionados, mas incapazes de contrariar a tendência generalizada de aproveitamento dos cargos públicos para enriquecimento pessoal. Além de desvio de fundos e negócios ilegais, há roubo de obras de arte, pedofilia e exploração sexual das mulheres. Do lado oposto, apesar de existirem grupos dissidentes, a figura que mais se destaca é um pintor que comete o grande erro de questionar a estética de um quadro “destinado a celebrar as conquistas da revolução”, sendo por isso internado num campo de reeducação, enquanto a família sofre represálias – incluindo a fome, uma vez que até as senhas para alimentação são distribuídas de forma a recompensar os bons cidadãos e a punir os inimigos do povo.
Nas sombras, prospera o líder de uma rede criminosa, tolerado pelos governantes porque lhes obtém tudo o que desejam para viverem como burgueses capitalistas. Antevendo a queda do comunismo e as brutais mudanças económicas e sociais que se seguem, esta figura tenebrosa prepara-se para controlar a democracia incipiente que assoma na segunda parte da obra, repondo a repressão e aumentando ainda mais as desigualdades sociais, deixando as ruas entregues a criminosos e oportunistas, incluindo traficantes de droga e neonazis em busca de bodes expiatórios fáceis.
O autor entrelaça vários destinos para compor uma distopia ambiciosa com laivos de humor negro, que nos interroga acerca do mundo em que vivemos e cuja leitura temos dificuldade em interromper. Embora nos surpreenda o amor secreto de uma heroína improvável, que resiste à morte e reclama vingança, os heróis que parecem óbvios acabam mal, ou aceitam compromissos em nome da sobrevivência. Esta tragédia de um povo pareceria exagerada, se não intuíssemos que a Eslávia representa algo real: “a imaginação não alcança o horror da realidade”.
1 Commentário
Perestroika é uma crítica satírica e mordaz ao pós União Soviética e bloco de leste, o que configura um tema muito atual em virtude da guerra que está a acontecer na Ucrânia.