Raymond Chandler teria alguma dificuldade em justificar, nestes tempos do politicamente correcto e da gestão delicada entre o exacerbar das atrocidades sociais e a intolerância à diferença, a figura espantosa que é Philip Marlowe.
A questão é: gostamos de Philip Marlowe por que é uma personagem dos anos 40, tal como de ver o Humphrey Bogart a encarnar este detective durão e corrosivo? Ou porque é possível gostar de personagens que têm uma boa dose de imperfeições balançadas com outras características e dons irresistíveis? Será que se trata simplesmente da diferença entre a realidade e a ficção e, neste último espaço, permitimo-nos a uma maior liberdade?
O prazer de ler “Perdeu-se uma Mulher” (Livros do Brasil, 2020) é o prazer de estar com Philip Marlowe, mais do que chegar ao final e descobrir a trama. Do princípio ao fim, as observações que faz deliciam-nos, sejam relativamente à polícia (por quem não nutre muita admiração) – “Recostou- se e meteu os polegares nas cavas do colete, o que lhe deu um certo ar de polícia, mas não lhe aumentou o magnetismo pessoal” – às mulheres (umas mais fatais que outras), à pancadaria que leva, às bebidas que toma (em doses avultadas e a horas do café da manhã) ou, simplesmente, a descrição que faz das pessoas com quem se vai cruzando – “Era Nulty. A voz dele parecia sair de uma boca atafulhada de batatas cozidas”; com uma acuidade e um humor que faz inveja a todos os que admiram esta combinação poderosa. – “ Não respondi. Acendi outra vez o cachimbo. Isso dá- nos um ar pensativo quando não se está a pensar em nada”.
A investigação, que começa com a procura pela namorada desaparecida de um condenado acabado de sair da prisão, depressa deriva para uma grande aventura com tráfico de droga, jóias roubadas, cartomantes e casinos ilegais, lugares obscuros e personagens estonteantes. Emoção, surpresa e humor a um ritmo que compele até ao final.
Para quem não passa sem uma boa dose de Chandler, a colecção Vampiro já publicou “O Imenso Adeus”, “A Dama do Lago” e “À Beira do Abismo” onde o cerebral, cavalheiro, cínico, sentimental e rebelde Marlowe se expande como o grande herói que é.
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