É mais uma grande edição da editora A Seita, servida numa bandeja feita de capa dura. Publicado originalmente em 2020, “Pele de Homem” (A Seita, 2022), escrito por Hubert e desenhado por Zanzim, foi um dos mais premiados romances gráficos franceses dos últimos anos. Algo que não impediu que Hubert, o autor do texto, pusesse termo à sua vida, culminando um debate de vida entre duas forças em oposição permanente: a sua origem católica e a sua homossexualidade. “Pele de Homem” poderá ler-se assim, talvez, como um legado deixado ao mundo, um sonho de vida que acabou por ser cumprido apenas no universo da banda desenhada.
Em vésperas de um casamento arranjado com um futuro marido que desconhece por completo, Bianca escuta estas palavras da boca da sua avó, reveladoras de um segredo familiar de gerações: “Nós, as mulheres da nossa família, temos um grande segredo. Possuímos uma pele de homem. Chamamos-lhe Lorenzo. Uma vez vestida, ninguém duvidará de que és um rapaz”.
Com esta pele, capaz de rivalizar com o manto da invisibilidade, Bianca irá transformar-se num homem para se aproximar de Giovanni, o futuro marido, que ao fim de pouco tempo lhe dá a conhecer as suas intenções: “Bem, no fundo não passa de uma operação comercial que passa pela cama. Para os afectos… não conto com o casamento…”.
Numa cidade da Itália renascentista que “tresanda a incenso e a beatice”, são muitos os temas abordados e que convidam a uma discussão sobre o mundo que queremos construir: a noção de propriedade, os códigos sociais ou de conduta, a visão da mulher como uma criatura inferior – também pela Igreja -, o sexismo, o direito ao prazer, o poder sobre o corpo, a transgressão, a moralidade, os diferentes tipos de família, questões sobre o género ou o difícil caminho na busca do amor.
Uma cidade – e um mundo – sexista, onde as mulheres pouco mais são do que objectos decorativos ou máquinas procriadoras, e na qual o fosso entre os sexos é profundo e infestado de crocodilos: “Seria tão útil que as mulheres conhecessem a vida e as sensações do outro sexo, de tal modo que os homens são para nós um continente estranho, com hábitos tão afastados dos nossos”. Um livro muito actual, que convida a que cada leitor caminhe com sapatos que não os seus.
Hubert foi uma das grande estrelas da BD francesa recente. Nascido numa família católica tradicionalista, que nunca tolerou a sua homossexualidade, sofreu de uma depressão profunda durante a sua infância, que sublimou nas obras que escreveu onde inventou “monstros e personagens marginais”. Iniciou a sua carreira escrevendo histórias para publicações mais independentes, mas rapidamente se tornou num argumentista de sucesso. Suicidou-se pouco antes do lançamento de “Pele de Homem”, o seu maior sucesso de sempre.
Zanzim (Frédéric Leutelier) é um desenhador de BD francês, e um dos mais frequentes colaboradores do escritor Hubert. O seu estilo carttonesco é inspirado em autores como Quino ou Sempé.
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