“Um nome não é apenas uma palavra; significa outro passado e uma pessoa totalmente diferente”. Sendo assim, o que pensar de um homem que teve sete nomes? Este é o problema com que se debate Avdo, um artesão conhecido por talhar lápides consoante a alma de cada um. Avdo, que em criança conheceu aquele homem misterioso e, muitos anos depois, recebe o seu diário, sabe que ele perdeu a memória e passou o resto da vida em busca de si próprio. Também ao artesão foi amputada parte do passado, quando se perdeu da mãe num mercado – tragédia que o obrigou a sobreviver cantando nas ruas de diferentes cidades da Mesopotâmia. O seu percurso, da infância à velhice, cruzado com outras vidas e com a História milenar daquele território, é-nos apresentado sob a forma de um puzzle pelo escritor curdo Burhan Sönmez, numa obra portentosa intitulada “Pedra e Sombra” (Livros do Brasil, 2024), distinguida com o Prémio do Romance Orhan Kemal na Turquia e finalista do Strega Europeu em Itália.
Começamos em 1984, num cemitério de Istambul, onde Avdo fixou residência por se encontrar lá o túmulo do seu amor perdido. Abriu ao lado uma cova para si próprio, restaurou um casinhoto em ruínas para se alojar, e vive desde então para a saudade, entre as árvores altas, a água pura da fonte e as chamas das fogueiras, tendo por companhia um cão, os pios nocturnos da coruja e os lamentos das almas, até à noite em que a sua paz é perturbada por uma sequência de visitas inesperadas.
O que se sucede é uma série de viagens no tempo, no espaço e noutras mentes além da de Avdo, paralelemente a conflitos religiosos, guerras e golpes de Estado. Recuamos aos anos da formação do protagonista, junto de um mestre que gravava lápides com a convicção de que “os vivos só são bons às vezes, mas os mortos são bons para sempre”, e que o ensinou a ”olhar para a abóbada celeste, seguir os sinais do céu, ler as estrelas”, de modo a imaginar as almas e talhar pedras tumulares como testemunhos das existências passadas. Acompanhamo-lo na passagem decisiva por uma aldeola da estepe, onde lhe apreciam a arte, mas não a estranheza de forasteiro, as muitas línguas que domina e os conhecimentos incómodos que transporta – um lugar onde a tradição é sinónimo de destino e a honra familiar exige vinganças de sangue. Descobrimos que chegou a ser condenado à morte, tendo a pena sido adiada e comutada devido à turbulência política, mas que a liberdade alcançada após sete anos de prisão só lhe trouxe a mágoa de ver os seus sonhos destruídos.
Avdo é o centro de uma teia cujos fios seguimos maravilhados, enredados na beleza da abordagem aos mistérios da linguagem, da memória, do tempo, e da morte. Como um herói astuto de um mito antigo, ele constrói uma vida nova para uma das visitas que o surpreenderam. E assim, ao criar futuros e sanar passados, triunfa sobre a crueldade do tempo e dos homens.
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