O avô João, depois da trombose, com o braço esquerdo paralisado, sempre a resmungar, instalou-se lá por casa, ocupando o quarto do neto e o sofá da família, implicando com as roupas da neta, nunca querendo fazer nada, sequer sair de casa, sempre mal-humorado e exigente para com todos.
Antes da trombose já assim era. Embora independente, a viver na sua própria casa e a trabalhar na barbearia, a presença do avô João, religiosamente ao fim-de-semana, era sentida pelos netos fundamentalmente como uma imposição familiar, sem ganhos de afectos ou de interesse mútuo.
Eis que um dia o avô João pede para fazer uma viagem. Quer visitar a terra onde nasceu. Um desejo. Um improvável desejo atendido pelo genro que no dia em que recebeu o ordenado prepara o carro que quase se desfazia. Atender à vontade de alguém que se suspeita próximo do fim e calar as insistências e lamúrias da mulher que, simplesmente, se quer deixar de ouvir, são o mote para que num sábado pela manhã toda a família despertasse em grande agitação e alarido.
Fora de portas, entre ruas estreitas e penedos, velhas pontes, eis que o avô se revela um outro homem. Entusiasta. Ri. Chega mesmo a revelar-se inusitadamente generoso. O que estaria a acontecer? Parecia outro. Como se tivesse despertado.
Esta é a primeira parte de “Pardinhas” (Asa, 2016), livro que António Mota publicou pela primeira vez em 1988 e que agora as Edições Asa reeditam. Livro juvenil, revela-se simultaneamente leitura que agrada a todos aqueles que de forma simples e clara gostam de retratos quotidianos providos de significado. À entrada da narrativa colhemos elementos sobre a vida de uma família, do desencontro de gerações e de afectos. Ainda assim, o compromisso, o respeito e a solidariedade são o mote para a acção retratada na segunda parte, essa sim especialmente impregnada pelas memórias passadas e pela preservação de sentido e de vontade, perseverança e respeito no seio de uma família.
Acompanhar o relato do avô João é conhecer e atribuir valor às privações, esforços e lutas de outros tempos, de outras gerações, e assim talvez melhor entender como alguns dos mais antigos têm tanta dificuldade em expressar afecto e ser generosos. Talvez pouco de tal lhes tenha sido dado ou ensinado. É acompanhar a saga de uma família, da sua luta pela sobrevivência e pela preservação da dignidade. É colher uma panorâmica do Portugal rural, analfabeto e austero de outros tempos.
A quarta parte é o reconhecimento e o deleite traduzido num “não sei quanto tempo estivemos sentados sobre as pedras forradas de musgo a ouvir o avô, em frente daquele silvado onde, calculo eu, viviam cobras, ratos, formigas e outra bicharada.”
António Mota possui uma vasta obra literária orientada para a infância e a juventude, constituída por várias dezenas de títulos publicados, fértil em representações e sentidos, uma narrativa muito versátil que mobiliza. Esta, como tantas outras obras do autor, é uma leitura recomendada pelo Plano Nacional de Leitura.
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