“Enquanto ouvia o carvão deslizando sobre o papel, Ana tinha a sensação de que o material desenhava a sua própria pele. Podia até sentir o pequeno bastão contornando o peito. De frente para a parede, já não conseguia fingir que observava uma paisagem intrigante. Já não conseguia esconder qualquer verdade.”
O olhar é de um narrador encarregue de contar a história da jovem escritora Ana. Numa mistura entre a voz de quem narra e da própria protagonista, “Paraíso” (Tinta da China, 2016), o novo romance de Tatiana Salem Levy, é uma leve viagem à história da região de Vassouras, entre o século XIX e a família de um barão de café até à actualidade, o momento em que decide escrever sobre a maldição que atinge as mulheres da sua família. Longe de ser um romance histórico, olha-se antes a herança cultural e a vida dos antepassados.
Tatiana Salem Levy não é desconhecida dos leitores portugueses. O seu romance “Dois Rios”, lançado no outono de 2012, foi um dos que ajudou a Tinta da China a abrir portas aos livros de ficção vindos do outro lado do atlântico. Mais recentemente, Tatiana foi apontada como uma das melhores escritoras brasileiras de sempre pelo The Independent e teve “A Chave de Casa”, o romance de estreia, como uma das melhoras obras de 2015 para o The Guardian.
Neste novo livro, a escritora dá a conhecer a história de Ana e a sua vontade em explorar as mulheres da sua família, naturais da região de Vassouras, vítimas de uma maldição lançada por uma escrava – antes uma sacerdotisa e princesa de uma tribo africana. Amante do barão da fazenda de café onde trabalha, acaba por ser enterrada viva quando a sinhá descobre a traição do marido. Mas, antes de lhe ser colocada a terra em cima, lança uma maldição que se perpetuará em todas as mulheres, ao longo de cinco gerações: todas irão ser infelizes. Ana pertence à última geração, e a maldição da sacerdotisa entra na sua vida a partir do momento em que o desconhecido ao seu lado, depois de uma noite de sexo desprotegido, lhe confessa estar infectado com VIH. O contágio não é o único temor da escritora. Um dos seus medos é também o passado, sempre a fugir das memórias que lhe invadem os pensamentos e “certa de que a felicidade exigia o esquecimento.”
Para esperar pelo terceiro e decisivo exame, aquele que lhe ditará o futuro, decide refugiar-se no “sítio” da sua amiga Mercedes, de nome Paraíso. E, à medida que trabalha no livro sobre a escrava e as gerações de mulheres amaldiçoadas na sua família, há um homem que se atravessa no seu caminho (“Tão raro conhecer um homem ruivo, e de repente ali estava ele, naquele lugar improvável. Pela primeira vez, a repugnância vinha junto com atração.”), que acaba por ser decisivo para o seu destino.
Em “Paraíso” há o entrelaçar de várias histórias: o refúgio de Ana, intercalado com alguns momentos do seu passado, e pedaços do romance que está a escrever no “sítio”. São os pedaços do livro que escreve, sob o olhar da escrava, que dão a conhecer as atrocidades que corroeram a vida das mulheres da sua família. Colocar no papel o destino de cada uma é ficar livre “das palavras proféticas da sacerdotisa” e libertar-se das amarras colocadas na sua alma. Para complementar a história que dá a conhecer ao leitor em pequenas partes, a jovem escritora também relembra os episódios familiares mais marcantes e negros que lhe levaram a felicidade. Todas as histórias paralelas, confusas numa leitura meramente superficial, são essenciais para criar uma história bem construída e cativante.
Tatiana Salem Levy conseguiu criar, com todo o seu talento, uma mulher forte e uma protagonista cativante. Se, no início da história, é o medo e a insegurança que tomam conta de Ana, ao longo do livro vemos a transformação de uma mulher capaz de enfrentar os tormentos do seu passado, sem medo de se descobrir a si própria através das palavras, da natureza, de lápis de carvão e do amor. “Paraíso” é um belo aperitivo da colecção de ficção da Tinta da China, uma história de luta contra os medos que impedem um ser humano de se descobrir na sua totalidade.
—
O lançamento de “Paraíso” está marcado para a próxima quinta-feira, dia 14 de Abril, na Casa Independente em Lisboa. A apresentação será feita por Alexandra Lucas Coelho.
Sem Comentários